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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

Desafio de escrita dos pássaros #6 O amor, uma cabana… e um frigorífico!

 

 

Ana e Rui viviam lá longe, bem longe da civilização. Viam muitas vezes o Rui, mas nunca ninguém vira Ana. Ainda assim, dizia-se lá na terra que eram um casal muito apaixonado, que Ana vivia para Rui e Rui só tinha olhos para Ana. Mas a civilização nunca vira Ana.

 

Rui trabalhava num pequeno café apenas algumas horas por semana, era homem de poucas palavras, não dava grande confiança às pessoas, mas sempre falava de Ana com muito amor, com paixão. Eram o casal perfeito. Viviam um para o outro, e Rui trabalhava pouco para poder ter todo o tempo para Ana. O mínimo para aconchegarem os seus estômagos.

 

Dizia-se que viviam numa cabana lá longe, na floresta, quase junto à falésia. Ana não trabalhava porque não precisava. A cabana não tinha luz, não tinha água, não tinha Internet nem condomínio, precisavam de pouco, apenas o suficiente para se alimentarem. Alimentavam-se essencialmente do amor um do outro, dizia Rui. Era o amor perfeito, o idílico dos livros, o das canções de amor e o dos poemas dos enamorados. Muitos diziam que Ana não existia. Rui jurava que sim, e que um dia a apresentaria à clientela.

 

Um dia uns caçadores ao passarem próximo da cabana da Ana e do Rui sentiram um cheiro nauseabundo. Apreensivos, desaceleraram o passo e aproximaram-se da cabana. E o cheiro pestilento cada vez mais intenso. Entraram.

 

E ali encontraram o que não queriam encontrar. E viram o que não queriam ver. Ana, pele e osso, acorrentada às paredes da cabana, já morta. Rui dava-lhe muito pouco para comer, e desta vez ela não conseguiu aguentar. Mantinha-a assim há vários anos. Ana nunca gostou de Rui e Rui nunca se conformou. Assim achou que iria ter Ana para sempre.

 

E eis que entra Rui de rompante, percebendo intrusos na cabana, pergunta aos caçadores o que estão ali a fazer. Os caçadores não deveriam de ali estar.

 

- Seguimos o cheiro, senhor! - Disseram os caçadores revoltados e chocados com o que acabaram de encontrar.

 

-  Peço desculpa senhores, é que não tenho frigorífico para a guardar. - Disse Rui, estranhamente tranquilo.

 

Rui fechou a porta atrás de si e até hoje mais ninguém viu os caçadores. Rui continuou a trabalhar tranquilamente no café algumas horas por semana e a falar do seu amor perfeito.

 

Fim.

 

__________

Espero que não se tenha notado muito a minha TPM neste texto!

Desafio de escrita dos pássaros #4 Beatriz disse que não. E agora?

Imagem retirada daqui.

 

Ele era tudo o que ela queria. Inteligente, carinhoso, bonito, apaixonante. Mas ele não era dela. Mas ainda assim ela suspirou por ele durante anos. Ou seriam dias? Ou apenas horas? Beatriz não sabe, com ele perdia completamente a noção do tempo. Beatriz amou-o em silêncio. Em silêncio achava ela, que os seus olhos gritavam, esbugalhados. Beatriz delineou em sonhos toda uma vida com ele, em silêncio. Em silêncio achava ela, que seu corpo sempre a denunciava. Beatriz amava-o e desejava-o como nunca julgou possível. Beatriz perdeu até o amor por si, para ter ainda mais espaço no seu coração para o amar, para o desejar, para o pensar e delinear.

Beatriz amava Dinis! Mas Dinis não era de Beatriz.

 

Dinis gostava de Beatriz... .

Gostava da forma como ela o olhava e o fazia sentir importante. Gostava da forma terna como ela o cuidava quando mais ninguém o fazia. Gostava até da forma ardente com que ela o desejava quando ele carinhosamente lhe atirava algumas migalhas, como um breve olhar ou uma palavra mais gentil. Beatriz fazia Dinis sentir-se único. Não. Dinis não gostava de Beatriz, mas gostava da forma como ela o fazia sentir. Heráldico. Importante. Especial. Ele que fora sempre desejado por muitas mas especial para ninguém.

 

Dinis não queria nada verdadeiro com Beatriz, só o suficiente para a manter interessada. Para a manter agarrada. Beatriz era a sua droga. E Dinis era a droga de Beatriz. Ela fazia-o sentir-se vivo. Dizia-lhe: "Um dia vou ter tempo para ti!". Mas nunca tinha. "Espera por mim que eu vou" Mas raramente aparecia. Mas Beatriz, tonta e sonhadora, agarrava cada migalha como se de um pão se tratasse; cada palavra como se de um livro inteiro fosse e cada olhar como uma esperança que logo se desvanecia, porque logo logo Dinis afastava Beatriz.

 

Sempre que Beatriz se afastava, Dinis dava-lhe um pouco mais da sua atenção, mais uma migalha da sua espécie de coração e Beatriz que se arredava, logo voltava. E aí voltava à dependência, aos sonhos, à imaginação dolorosa com a certeza da ausência. Dinis não queria Beatriz, mas Dinis também não queria não ter Beatriz.

 

E um dia abandonaram-no a mulher e os filhos e Dinis sozinho no mundo ficou, restando-lhe a única que verdadeiramente o amou e que ao lado dele sempre esteve.

 

"Fica comigo!"

 

E assim Beatriz teve o mundo aos seus pés e ouviu o que sempre sonhou, o que toda a vida esperou. E ele fez planos, e ele fez promessas, e ele... Agora ele... Agora ele era dela. Aquilo que ela sempre sonhou, tudo o que sempre desejou. Mas Beatriz sabia o que isso também significava: O papel de mulher não era melhor que o papel que ela já ocupava. 

 

E então Beatriz disse que não. E agora?

 

_______________

Podem ler este, e outros textos do Desafio de Escrita dos Pássaros, aqui.

Quem conta um conto #16 Cartas Soltas IV

Cartas soltas.JPG

 

Não temos uma banda sonora que nos caracterize, ou filme ou livro que nos relate porque não existimos. Não temos história. Não temos um passado, um presente e estamos longe de ter um futuro. Gostava que o nosso nós pudesse ter um futuro. Mas o nosso nós não existe. Não há musica, filme ou livro que descreva o que não existe. Porque não existe.

 

Gostava apenas de perceber, de saber, se compreendes a dimensão da história. A dimensão daquele pequeno papel colocado aparentemente ao acaso, mas tão propositado. Gostava de saber o que sentiste. Se te arrepiaste. Se te amedrontaste. Gostava de saber se sorriste. Gostava de saber se simplesmente ignoraste e nada sentiste. Gostava tanto de saber... E no meio de tanta questão existencial, gostava apenas de saber se viste. Se é que se pode ver o que não existe.

 

Não sou normal. Não me conheces mas esclareço-te que não sou normal. Passaste tanto tempo ao meu lado e nunca te vi. Nunca te tinha visto e agora... Agora... Agora fecho os olhos e bato na cabeça para deixar de te ver. Não te quero ver. Grito para mim que não existes. Mas adoras demonstrar-me que existes. Que és real. Ou então não.

 

Sou confusa. Tu és ainda pior que eu. Não me queres, não me amas, não me sentes. Mas fazes questão de deixar a tua marca para que eu te queira, para que eu te ame, para que eu te sinta.

 

Sou revoltada. Tu és ainda pior que eu. Se te afasto, se propositadamente te afasto, tu aproximas-te. Se eu me aproximo tu não te moves. Quiçá por medo, por cobardia ou simplesmente por ignorância. Não nos aproximamos os dois nunca. Mas afastamo-nos sempre em separado.

 

Sou apaixonada. Tu és ainda pior que eu. De mão em mão, de corpo em corpo. Procuras o que não é possível encontrar, porque não é possível encontrar quando não se sabe o que se procura. Talvez por isso não me procures a mim.

 

Não entendo onde a história nos irá levar... Mas irá-nos levar. Ou levar-me-á apenas a mim. Tu ficarás sempre imóvel no mesmo sítio.

 

E no final, porque o fim é sempre certo, fecho o livro, guardo-o na estante e tento seguir a minha vida como se nunca te tivesse conhecido e grito para mim que é só mais uma história.

 

É sempre só mais uma história.

O Tempo... Tic tac... Tic tac...

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O tempo.

 

Muito se poderia dizer sobre o tempo. Tic Tac... Tic Tac...

 

Há quem sinta que o tempo sobra, há quem sinta que o tempo falte. Para estes últimos, a gestão das prioridades é essencial, para que esse tempo estique, ou dê a noção de que estica, mesmo que não estique realmente. Aqui, há quem priorize erradamente, quer no que toca a questões, quer no que toca a situações, quer no que toca a pessoas. Essencialmente no que toca a pessoas. Tic Tac... Tic Tac...

 

Há por isso, quem um dia vá olhar para trás, e vá tentar priorizar diferente para tentar recuperar esse tempo, o tempo que perdeu estupidamente. Mas ao olhar para esse tempo que perdeu, vai perceber que já perdeu demasiado tempo e que já não há tempo para fazer diferente. Tic Tac... Tic Tac...

 

Há por isso, quem um dia vá olhar para trás, e vá perceber que não deu valor a quem devia de ter dado, que não abraçou vezes suficientes, que não beijou vezes suficientes, que não amou o suficiente. Tic Tac... Tic Tac... 

 

O tempo é escasso, o tempo foge... O tempo terminou. Tic Tac... Tic Tac...

 

Terminado o tempo resta apenas prosseguir com a vida, com o pesar das consequências, do tempo perdido, mas essencialmente com o pesar das pessoas perdidas. Porque agora que o tempo terminou já não se beija quem se queria beijar, já não se abraça quem se queria abraçar, e ama-se em silêncio e à distância, quem estava logo ali no sofá ao lado, mas que por falta de tempo, se esqueceu de amar.

 

Tic...                           tac...

 

O relógio deixou de se ouvir.

Desafio | A minha vida é um livro!

 

Quando o Crónicas de um café mal tirado desafiou a Mula para contar uma história utilizando todos os livros lidos em 2016, não tinha consciência do número de livros que li este ano, e tenho a confessar-vos que nunca li tantos livros em tão pouco tempo. Catorze livros no total. Para muitos um número pequeno, brincadeira de crianças, para a Mula é um grande número. Sempre gostei de ler, mas com a escola, e depois com a faculdade, nunca sobrava grande tempo para tal, e então lia uns dois ou três livros por ano, não... catorze. Catorze e uns pozinhos, que tenho dois ou três livros começados e não terminados, entre eles o atual, o derradeiro, o apaixonante: Labirinto dos Espíritos! ^_^

 

O Desafio consiste em:

Eis a minha história:

 

Uma Mulher Não Chora, dizem aqueles que nunca viram o seu coração partido por um malandro qualquer de cabelos loiros e olhos azuis. Maria, após chorar dias e dias a fio por um malandro que não a merece, é aconselhada pela amiga Rita a ler um Guia Astrológico para corações partidos que encontrara num café, na sua romântica Lua-de-Mel em Paris. Rita sempre fora apaixonada por Paris, tinha criado até um plano, ao qual chamava de O Plano Infinito, para viver com o seu marido naquela cidade. Mas João não estava muito para aí virado, sempre fora O Navegador Solitário, aquele que preferia viver isolado nas montanhas, longe da confusão, e Paris era demasiado confuso e com demasiadas gentes. João não gostava, quem o tirava das montanhas tirava-lhe a alma e a vontade de viver. Dizia que a cidade não tinha  A Sombra do Vento, que era tudo negro e sem vida, que as flores eram falsas que para serem verdadeiras não poderiam ser criadas em estufas, trancadas, como se d' Os Sete Últimos Meses de Anne Frank se tratasse. João dizia que as plantas mereciam ser livres, terem acesso ao vento, ao sol e à água naturalmente, longe das mãos dos homens.

 

Maria nunca gostou muito do campo, preferia a cidade, tal como Rita, mas como estava deprimida desde que fora abandonada pelo seu amante, e com saudades da sua amiga, decidiu visitar Rita e João nas montanhas. Seria uma viagem com volta no próprio dia, mas uma tempestade a impediu de regressar, tempestade essa que fez com que o casal ficasse sem luz na sua residência, obrigando-os a colocar velas em todas as divisões. Só que como se sabe, As velas ardem até ao fim e não tardaram em ficar às escuras. Maria sempre teve medo do escuro e aquele momento fazia-lhe lembrar O Jogo do Anjo que brincava em miúda, em que todas as luzes se apagavam e um miúdo previamente nomeado precisava de encontrar a outra criança que tinha a lanterna - como que um anjo - para os ajudar a encontrar os restantes meninos, que entretanto se tinham escondido longe dos olhares de todos. Maria tropeçara, e magoara-se. Como os pais eram contra que Maria brincasse a esse jogo ficou de castigo e ao longo de todo o verão fora obrigada a ler O Novíssimo Testamento, "para aprender a ser uma boa menina", dizia a mãe.  Durante todo o verão, As Gémeas do Gelo que viviam no andar de baixo, tentaram convencer a mãe de Maria a tirar-lhe o castigo para brincarem todas juntas, mas a mãe insistia que a filha precisava de encontrar A Luz que tinha dentro de si, para se portar bem e ser uma boa menina, mas a menina não encontrava essa tal luz e apenas se sentia como O Prisioneiro do Céu, na torre da sua casa, qual Rapunzel.

 

Entretanto nas montanhas, a luz voltou para alegria de todos e finalmente surge João do escuro de joelhos, carregando cuidadosamente nas suas mãos A pérola mais bela que alguém alguma vez já vira, abraçando a sua amada enquanto lhe dizia baixinho ao ouvido: Vamos viver para Paris!

 

 

E eu que sou conhecida por ter histórias com finais trágicos, começo assim 2017 com uma história com final feliz, tomem lá esta, suas más línguas, tomem!

 

E os nomeados são:

- Desculpa Magda, sei que te vai dar um trabalho desgraçado, coragem m'lher! [Acho que não faz mal se fizeres uma seleção prévia!]

- Pandorinha, não podes faltar a este desafio, escrita criativa e livros que mais podias desejar para começar bem o ano?

- Cumékeé Maria, temos palavras e livros, conto contigo?

- FatiaMor, como estivemos de leituras em 2016? 'Bora lá, bem sei que não fazes reviwes dos livros, desenrasca-te com os links para a wook!

- Inês, quão trabalhoso é fazer uma tira, ou uma banda desenhada inteira, com uma história?

 

Boas histórias a todos e que 2017 seja um ano de muitas e boas leituras!

Quem conta um conto #15 A rapariga dos sapatos amarelos

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Chegou a casa e descalçou os seus sapatos amarelos, os seus favoritos da estação. Deixou-se cair no sofá cansada e quando olhou para o relógio, várias horas tinham-se passado desde que chegara a casa. Deixou-se dormir. Naquele momento deu-se feliz por estar sozinha, por não ter uma família que dependesse de si. Sentia-se tão cansada... No entanto, largou inconscientemente um suspiro. Por vezes, gostava de ter um jantar para preparar, ter roupa de alguém para passar e lavar, ter fraldas para mudar, ter algo para fazer que não fosse apenas para si e cuidar de si. Mas logo abandonou a ideia. Sabia que isso não seria possível. Que isso há muito que não a fazia feliz.

 

Rosa, há muito que estava sozinha, com os filhos já criados, há muito que não conhecia a casa com barulho. Sempre com a televisão desligada, e alguns livros na escrivaninha onde por vezes rabiscava, a vida de Rosa era assim: aos olhos dos outros, vazia. Desde o divórcio que Rosa não se relacionava com homens, excetuando relações fortuitas, de uma noite apenas, para satisfação própria, porque precisava, porque sentia vontade, porque necessitava por vezes de perceber que ainda está viva, que ainda sente, que ainda se podem interessar por ela, desejá-la e beijá-la. Mas há muito que deixou de conseguir ter um homem em sua casa. Ela percebeu-o no dia em que pediu o divórcio. Era injusto para si. Era injusto para o outro. Rosa deixou de saber viver acompanhada.

 

Rosa e Marco foram um casal feliz outrora. Conheceram-se num seminário de saúde e casaram-se em poucos meses. Um ano após o casamento tiveram Maria, e logo a seguir, tinha Maria apenas um ano, veio o Pedro. Um casamento desejado, dois filhos desejados, um percurso feliz. Quando os filhos cresceram, Rosa e Marco puderam voltar a dedicar-se inteiramente ao trabalho, e cada vez eram menos as horas que passavam em casa. Quando Maria e Pedro se casaram e saíram de casa, Rosa e Marco já mal se viam. Tentavam sempre que podiam sair da rotina. Marcavam escapadinhas aqui e ali. Tentavam aproveitar cada minuto que tinham um com o outro. Os fins-de-semana um com o outro eram efetivamente um para o outro: viviam-se, amavam-se e desejavam-se como quando tinham apenas 27 anos e se conheceram. Mas assim que regressavam a magia terminava, as discussões recomeçavam e o casal novamente se afastava. Rosa não tinha tempo para Marco. Marco não tinha tempo para Rosa.

 

Mas Marco começou a chegar cada vez mais tarde a casa. Rosa dedicava-se cada vez mais à sua profissão e cada vez tinham menos tempo um para o outro. Um dia Rosa com saudades do seu Marco surpreendeu-o fazendo-lhe uma visita surpresa ao local de trabalho. Mas Rosa, que queria surpreender acabou surpreendida, e viu o seu Marco com uma jovem de sapatos amarelos. Beijava-a como já beijou Rosa, acariciava-a como já tinha acariciado Rosa, desejava-a como já tinha desejado Rosa. Rosa focou, não querendo acreditar. E tudo não passou de uma miragem. Rosa vira-se a si mesma com Marco, jovens apaixonados e logo percebeu que isso já não existia. Espreitou para o gabinete e viu Marco com um ar cansado, com o rosto demarcado das rugas. Infeliz. Percebeu ali que podiam fazer muito mais um pelo outro, que poderiam arranjar tempo se assim o desejassem. Só que na realidade já nada os prendia a não ser o passado. Rosa entrou, sentou-se e conversaram horas. Conversaram como há muito não conseguiam.

 

Até ao divórcio sair foi um instante. Porque é simples, agora com apenas alguns passos, dar por terminada toda uma vida em conjunto. À saída da conservatória Marco tinha menos rugas, estava com ar aliviado. Pronto para encontrar alguém com tempo para si, para a vida.

 

Assim Rosa recomeçou a sua vida, sozinha, dedicando-se interiranente à profissão, que era o que verdadeiramente lhe dava prazer. Que era o que realmente se sentia capaz de fazer. E quando sentia saudades da sua vida passada, do seu Marco, calçava os sapatos amarelos, os seus favoritos da estação, recordava com um sorriso no rosto o dia em que Marco lhos oferecera e em como eram felizes nessa altura. E deixava-se cair no sofá cansada, saudosa, mas feliz.

 

Porque nem sempre o que os outros têm é o que desejamos para nós.

Para as comemorações do Dia Internacional do Idoso

O Dia Internacional dos Idosos festeja-se no dia 1 de Outubro, no entanto as comemorações do mesmo já começaram. Por isso (re)publico, em jeito de memória e homenagem um conto que escrevi e que publiquei há uns meses, por altura do dia dos namorados, sobre o amor na terceira idade. 

 

Vamos então falar de amor, na terceira idade? 

 

Pequeno conto.jpg

 

José acordou atordoado, e até meio agoniado sem saber porquê. Levantou-se, vestiu-se e foi ao café de sempre, tomar o pequeno-almoço de sempre, na mesma mesa e lugar de sempre. Fora sempre assim desde que Ana o deixara naquela tarde de Verão. Desde então o olhar de José ficara vazio e distante, companheiro do seu sorriso menos caloroso, menos feliz.

 

**

 

Não existia um único dia que José não recordasse Ana. As recordações preenchiam-lhe o coração, faziam-no sorrir, ainda que com alguma amargura. Sentia saudades. Saudades dela, do que outrora foram, dos momentos que passaram juntos. Recordava essencialmente as últimas férias que tinham passado. Lembrava-se do desejo que Ana tinha de ir aos Açores e do quão feliz ela ficou quando ele a surpreendeu com as viagens de avião, a boca de Ana era pequena demais para conseguir sorrir o suficiente que o seu coração sentia. Foram verdadeiramente felizes nos Açores, nessas últimas férias que passaram juntos. Depois Ana deixou-o... Sem aviso prévio, sem que nada o fizesse prever e José nunca mais fora o mesmo.

 

José recorda bem esse dia e essas recordações fazem-no chorar... queria ao menos ter-se despedido, queria ao menos ter sido preparado, mas Ana preferiu não o fazer. Sempre respeitou a sua decisão, ainda que nunca a tivesse compreendido realmente. José recorda bem esse fatídico dia, que chegou a casa e Ana não estava lá, sentada no sofá como sempre à sua espera. Lembra-se bem do toque do telefone às 18h daquele dia. Lembra-se bem do seu coração ter parado, sentindo que algo não estava bem, estranhando a ausência da sua amada.

 

José foi ao hospital, mas já era tarde demais. Ana já tinha partido, o cancro que ocultara de todos, de si, dos seus filhos, tinha-a levado e José sentiu-se tão estúpido, tão perdido. José odiou até um bocadinho Ana naquele dia, porque não compreendia o seu egoísmo, não compreendia como tinha sido ela capaz de lhe ter ocultado a sua doença. "Ana sofria de cancro do pâncreas, e lutava contra ele já há 6 meses..." explicou a José, a médica que desde essa altura a acompanhava. Recorda bem as palavras da médica a explicar-lhe que Ana nunca quis contar à família porque não queria que a olhassem de modo diferente. Não queria que a olhassem com medo, com pena, e recusara a quimioterapia, para não se denunciar. "No entanto fizemos tudo o que estava ao nosso alcance Sr. José".

 

Ana nunca deixara de sorrir, nunca houve um só momento de desconfiança. José nunca lhe vira uma única lágrima, nunca a vira abatida, nunca a vira em sofrimento. Lentamente deixou de a odiar, e o ódio deu lugar a um orgulho desmesurável: Ana tinha sofrido 6 meses sozinha, em silêncio e nunca existiu um único dia que não tivesse cuidado de José. Quando José se viu sozinho, de um dia para o outro, percebeu que teria de continuar a história de modo mais solitário. Os filhos ainda lhe propuseram que se mudasse para uma das casas deles, mas José não quis. Saberia que Ana desaprovaria que ele desistisse da sua independência e passasse a viver sob outro tecto que não fosse o seu. E José também não queria deixar a casa que outrora fora cheia de gargalhadas ruidosas de Ana, e carregada do seu perfume com travo a alfazema. Com o tempo fora criando novas rotinas e encontrara novas formas de ocupar o tempo. As refeições foram uma das rotinas que se alteraram. Era-lhe menos penoso sentar-se à mesa de um café ou restaurante, em vez de se sentar à mesa que outrora Ana também se tinha sentado, com os seus deliciosos cozinhados. Mas aos poucos, José foi compreendendo que a ideia não era esquecer Ana, mas aprender a viver com a ausência física desta, mas com a sua presença constante em pensamento. Já cozinhava, já se sentava à mesa para jantar, para almoçar... Só o pequeno-almoço ainda era tomado fora de casa, porque era a altura do dia que mais lhe custava. Era de manhã, quando acordava, que se lembrava que Ana já não o acompanhava, essencialmente quando essas manhãs eram precedidas de sonhos fantásticos a dois.

 

**

 

"O mesmo de sempre, Sr. José?" pergunta a menina do café. "O mesmo de sempre, menina!" Só que desta vez, sorriu mais que o habitual. Ver o café redecorado de vermelho e corações pendurados fê-lo sorrir.

 

- Que dia é hoje, menina? - pergunta desconfiado.

- Hoje é dia 14 de Fevereiro, Sr. José... - Diz, a menina com algum receio de o entristecer.

- Hoje é portanto, o que vocês jovens chamam de o Dia dos Namorados... não é? - reforça.

- É sim... para quem tem namorado. Para quem não tem é só mais um dia Sr. José. - Diz-lhe piscando-lhe o olho.

 

José recorda que Ana sempre o atormentava com o dia dos namorados, que ele nunca recordava. Sempre fora péssimo com datas, e achava que a mimava diariamente sem qualquer necessidade de a mimar em algum dia especial. No entanto, Ana, desde a juventude muito romântica, sempre reclamara que queria algo especial neste dia e José nada mais que fazia, se não levar Ana a jantar fora, por insistência desta. 

 

Decidiu que este ano iria ser diferente, decidiu este ano festejar o dia dos namorados com a sua iniciativa, como forma de homenagear a mulher que tanto amava. Fez um jantar especial. José aprendera a cozinhar à pouco tempo com as suas noras e filhos e já lhe elogiavam os cozinhados. Convidou assim, os seus filhos, a jantar em sua casa, estes ajudaram-no a encher a casa de corações, para deleite dos netos, e jantaram animadamente à luz das velas, com uma bela música clássica em fundo. Viram depois um dos filmes preferidos do casal. José percebeu assim que "namorada" é só um título para alguém que se ama, que este dia, não é nada mais que uma ode ao amor, e como a sua eterna namorada não o poderia acompanhar fisicamente, passou a noite com quem verdadeiramente amava: a sua família. Os filhos, para o surpreenderem, trocaram presentes. Um presente especial fizeram cair as lágrimas de José. José iria voltar aos Açores e reviver os locais onde outrora fora feliz. José, que agora sentira capaz de viver sozinho, aceitando a ausência da sua amada.

 

Partiu assim no dia seguinte para os Açores, sem viagem de volta. Arranjou uma casa pequena, onde decidiu recomeçar a sua nova vida, onde se sentia mais perto das suas recordações. Ali, José foi feliz!

 

 

Feliz dia dos Idosos a todos os idosos do mundo! 

Quem conta um conto #14 Cartas Soltas III

carta

 

Às vezes penso que foste apenas uma miragem. Alguém que nunca existiu, a não ser em pensamento. Às vezes acho que te idealizei e construi na minha mente à semelhança dos meus desejos e motivações. Por isso nunca me falaste, nunca me tocaste, nunca me desejaste. Às vezes penso que nunca exististe e que nunca existirás, a não ser em mim.

 

Não existes. Os meus olhos procuram-te, mas tu não existes. Por isso não te vejo... Deixei de te ver.

 

Às vezes penso que existes, que apenas apareces e desapareces mediante as emoções, mediante o tempo e a temperatura do corpo. Uma espécie de omnipresença, uma espécie de experiência, algo sobrenatural. Não te construi, apenas te desejei e inventei na minha alma e memória aquilo que não és mas que desejava que fosses. Projetei em ti, na tua possível existência o que eu desejava, os meus medos, as minhas emoções. Os nossos olhos já se cruzaram, mas nunca me falaste. Ou terás falado e eu não terei ouvido? Nunca me tocaste. Ou terás tocado e eu não terei sentido? Nunca me desejaste. Ou terás desejado e eu não terei percebido?

 

Talvez existas. Talvez os meus olhos te procuram porque existas. Mas não te vejo... Já não te consigo ver.

 

Efetivamente existes. És real, de corpo e alma com todos os pormenores perfeitos e imperfeitos que te constituem. Não te inventei, ou talvez te tenha inventado um bocadinho para te melhorar. Porque desejamos sempre que os outros sejam melhores, mais perfeitos, mais completos do que nós. A tua existência permanece na minha memória. Sim, eu vi-te, tu existes. Apesar de nunca ter ouvido a tua voz tu existes, até acho que já me tocaste por um impulso, por um erro, por um acidente. Sinto que já me tocaste. Sinto que já  me desejaste nem que fosse por um impulso parvo e animal. Sim, sinto que já me desejaste.

 

Existes e eu agora vejo-te. És real, podes efetivamente tocar-me e eu sentir. Podes efetivamente falar-me e eu ouvir. Podes efetivamente desejar-me e eu perceber. E porque és real a minha alma já não te precisa, que a alma só se alimenta do que não existe: dos sonhos, dos desejos, das utopias. Porque és real e porque eu te posso ouvir, tocar e desejar os meus olhos fecham-se para não te ver, não te tocar e não te desejar.

 

Fecho os olhos e continuo a imaginar-te perfeito, utópico e irreal. Sorrio. E o meu coração ganha novamente vontade de te procurar. Prefiro continuar a acreditar que não existes, e ser feliz.

Quem conta um conto #13 Em Busca da Felicidade

Em 2009 participei num passatempo de uma editora para publicar um conto e fiquei assim com uma espécie de publicação em livro, do dito conto. O tema era o fantástico, e foi esta a história que saiu. Sete anos passaram desde então... Partilho convosco o conto, a quem gostar do estilo, bem diferente do meu estilo actual. Ah! Antes que perguntem, esta é uma história com final feliz... ou não! 

 

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Ler Conto )

Quem conta um conto... #12 Cartas Soltas II

Mandei limpar a nossa aliança de casamento. Senti que tinha tirado o mundo de cima de mim. Senti-me tão leve, tão livre, tão solta. O peso do mundo saiu de cima dos meus ombros por breves instantes, por preves minutos, não mais que isso... por breves minutos. Mas nesses instantes fui feliz, fui eu, novamente, como o fui há muitos anos atrás.

 

Se há 20 anos atrás me perguntassem se era feliz, dizia-o sem reservas, sem dúvidas, dizia que era feliz com a total consciencia que o era realmente. Depois conheci-te, e a minha vida ficou ainda mais completa, mais feliz. O meu coração ficou ainda mais cheio.

 

Hoje, 20 anos depois sinto que sou merda para ti. Quando olho nos teus olhos sinto-me merda, porque tu me fazes sentir merda. Não pelas tuas palavras, não pelos teus atos, mas pelo teu olhar. Sou merda para ti.

 

Não importa continuares a dizer que fazes tudo por mim, que andas comigo para todo o lado. Não importa porque não o fazes por ti, não o fazes genuinamente porque queres, porque gostas, porque te importas. Fazes porque parece bem, porque um dia te disseram que deverias de ser meigo e generoso com as mulheres. Mas os teus olhos dizem o contrário.

 

Poder-me-ia divorciar de ti? Podia... claro que podia. Mas... por vezes é mais fácil suportar a amargura dos teus olhos que um novo recomeço. O que tenho a perder estando contigo, é menor do que o que perderei se for para longe de ti. Se ganharia uma vida mais feliz? Provavelmente, mas acho que já não consigo nem tenho forças para recomeçar, para conquistar, para seduzir novamente. Fazes-me sentir merda, e por isso sou um bocado merda, realmente. Há muito que engordei, há muito que deixei de me arranjar e já nem reconheço a imagem que o espelho reflete. Há muito que sou efectivamente merda.

 

E tu, finalmente sentes-me desvanecer... sentes que aos poucos perco a alegria que tinha dentro de mim e isso lembra-te a vida miserável que temos, os sentimentos miseráveis que demonstramos ter um pelo outro. E por isso tentas... Tentas, em vão colar os pedacinhos da minha alma. Tentas remediar o que remediado está e mais remédio não existe. Tentas e continuarás a tentar, mas dentro de mim já não há ninguém. Já não hás tu, nem eu... Já não há ninguém. 

 

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos. Mais do que um blog, são pedaços de uma vida.