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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

Não vi toda a vida a passar à minha frente...

... Mas vi um futuro muito negro. Acho até que cheguei a ver zero futuro, toda uma vida pela frente interrompida numa viagem de sonho.

 

Bem sei que não era para escrever publicações durante as férias, tirando as curtas do dia -  que são isso mesmo... Pequenas curtas, não lhes chamo se quer "publicações" - mas... Acho que preciso de exorcizar aquilo que acabou de se passar. Não consigo dormir se assim não o fizer. Digamos que preciso de desabafar, gritar, chorar! Para depois acalmar-me e dizer para mim: foi só um susto! 

 

Sou uma pessoa medrosa normalmente mas confesso nunca tive tanto medo na vida, toda eu era pânico e tremeliques, toda eu era sofrimento mas consegui - nem sei bem como, confesso - ter energia para corrigir o mal que estava feito. Dizem que o ser humano desesperado tem energias inesgotáveis, é possível que seja verdade. 

 

Convenci o Mulo a descermos até à Lagoa do Fogo, para mim uma das mais bonitas, e como tinha lido em fóruns e blogs que apesar de cansativo se fazia bem e sem risco, lá fomos. Nós, Mulos da cidade, lá fomos trilho abaixo. Imensa gente estava no trilho, para trás e para a frente, pessoas de variadas nacionalidades e idades estavam no trilho e eu pensei "se estas pessoas mais velhas conseguem, nós também conseguimos" mas desde logo percebemos que o trilho de fácil tinha muito pouco, e de seguro mais à frente também viemos a descobrir que muito menos.  Os degraus eram muito espaçados, alguns deveriam ser separados por cerca de um metro - só saltando - e o percurso tinha muita lama. Eu ia à frente, o Mulo vinha logo atrás de mim. Notei que ele descia tudo com muita dificuldade - digamos que os joelhos dele não são o seu melhor atributo  - e eis que mais ou menos a meio do trilho ele escorrega, cai e eu tento agarra-lo. Não sei, sinceramente, como é que tudo ocorreu realmente, quando dei por nós já estávamos no "chão".

 

Primeiro pensamento: aii o joelho dele! Porque se voltasse a acontecer o que aconteceu o ano passado eu não tinha como o levar lá para cima. Eis que percebo que não estávamos no trilho, eis que me cai a ficha que tínhamos rolado ribanceira abaixo. O pânico de me mexer e perceber que podia cair mais. O pânico de não me conseguir agarrar a nada porque tudo me fazia cair mais. O pânico quando percebi que ele ainda estava mais para baixo que eu. O pensamento irreflectido de agarra-te a mim que eu puxo-te, não te deixo cair, quando nem eu estava numa posição segura, ainda que mais favorável. O pânico de o perder. Consegui encontrar uns arbustos onde me agarrar e lá consegui subir. E ele? Ele estava demasiado para baixo, e eu não sou uma pessoa de força de braços, e o piso era tão inclinado, nada ajudava, e apesar de nos termos cruzado com dezenas de pessoas em todo o trilho, naquela altura não apareceu ninguém.

 

Ele pediu para eu ir pedir ajuda mas eu não o queria deixar. Confesso, passou-me tudo pela cabeça, achei mesmo que não o ia conseguir tirar dali. Nunca tive tanto medo na minha vida. Praguejei tanto, mas tanto!

 

Fomos por partes, primeiro torná-lo mais leve tirando-lhe a mochila e a bolsa que trazia e que se estava a envolver na vegetação e aos poucos consegui-o puxar para cima de volta ao trilho. Só então abraçada a ele a chorar consegui respirar, e aí parece que deixei de sentir todo o corpo. 

 

Quis voltar para trás, regressar a salvo ao carro. Mas já tínhamos feito uma boa parte do percurso, e ele insistiu para continuarmos. E lá descemos até à Lagoa do Fogo, lavamos as feridas - dele, que eu só tive meia dúzia de arranhões e alguns espinhos cravados na pele, mas ele ficou com bastantes mossas - descansamos e ganhamos novas forças para subir tudo o que descemos - subir é muito mais fácil do que descer, convenceu-me ele. Mas não é verdade!  - e quem nos viu nos banhos férreos umas horas mais tarde na caldeira velha, ninguém adivinharia a história negra que carregávamos na alma e que apenas tinha ocorrido momentos antes.

 

Ele chegou à cama e adormeceu de imediato, eu que não conseguia dormir vim falar-vos. Gostava de conseguir fazer o mesmo confesso... 

 

Somos, no fundo, uns sortudos: um deslize destes mais à frente e não teríamos esta vegetação densa para nos amparar, e não estaríamos aqui para contar o que aconteceu. 

 

Não vi, contrariamente ao que difundem - a vida toda a passar-me à frente, mas confesso que vi o futuro mais negro de sempre. E bem sei que vai ser algo com que vou "sonhar" nos próximos dias. Uma coisa é certa, a ver se nos fica para a vida: trilhos pedestres não são para nós! 

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Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos. Mais do que um blog, são pedaços de uma vida.