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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

Quem conta um conto #14 Cartas Soltas III

carta

 

Às vezes penso que foste apenas uma miragem. Alguém que nunca existiu, a não ser em pensamento. Às vezes acho que te idealizei e construi na minha mente à semelhança dos meus desejos e motivações. Por isso nunca me falaste, nunca me tocaste, nunca me desejaste. Às vezes penso que nunca exististe e que nunca existirás, a não ser em mim.

 

Não existes. Os meus olhos procuram-te, mas tu não existes. Por isso não te vejo... Deixei de te ver.

 

Às vezes penso que existes, que apenas apareces e desapareces mediante as emoções, mediante o tempo e a temperatura do corpo. Uma espécie de omnipresença, uma espécie de experiência, algo sobrenatural. Não te construi, apenas te desejei e inventei na minha alma e memória aquilo que não és mas que desejava que fosses. Projetei em ti, na tua possível existência o que eu desejava, os meus medos, as minhas emoções. Os nossos olhos já se cruzaram, mas nunca me falaste. Ou terás falado e eu não terei ouvido? Nunca me tocaste. Ou terás tocado e eu não terei sentido? Nunca me desejaste. Ou terás desejado e eu não terei percebido?

 

Talvez existas. Talvez os meus olhos te procuram porque existas. Mas não te vejo... Já não te consigo ver.

 

Efetivamente existes. És real, de corpo e alma com todos os pormenores perfeitos e imperfeitos que te constituem. Não te inventei, ou talvez te tenha inventado um bocadinho para te melhorar. Porque desejamos sempre que os outros sejam melhores, mais perfeitos, mais completos do que nós. A tua existência permanece na minha memória. Sim, eu vi-te, tu existes. Apesar de nunca ter ouvido a tua voz tu existes, até acho que já me tocaste por um impulso, por um erro, por um acidente. Sinto que já me tocaste. Sinto que já  me desejaste nem que fosse por um impulso parvo e animal. Sim, sinto que já me desejaste.

 

Existes e eu agora vejo-te. És real, podes efetivamente tocar-me e eu sentir. Podes efetivamente falar-me e eu ouvir. Podes efetivamente desejar-me e eu perceber. E porque és real a minha alma já não te precisa, que a alma só se alimenta do que não existe: dos sonhos, dos desejos, das utopias. Porque és real e porque eu te posso ouvir, tocar e desejar os meus olhos fecham-se para não te ver, não te tocar e não te desejar.

 

Fecho os olhos e continuo a imaginar-te perfeito, utópico e irreal. Sorrio. E o meu coração ganha novamente vontade de te procurar. Prefiro continuar a acreditar que não existes, e ser feliz.

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos. Mais do que um blog, são pedaços de uma vida.