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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

E por falar em criancices...

...Eu já gostei de um rapaz chamado Victor.

 

O Victor tinha cabelo à tigela e era um ano mais velho que eu. Eu gostava do Victor, eu sonhava com o Victor, eu suspirava pelo Victor, eu chorava pelo Victor, só que eu não conhecia o Victor, porque o Victor era de uma turma diferente e eu demasiado envergonhada para me apresentar. O Victor jogava futebol e eu comecei a jogar também para chamar a atenção, só que o Victor nunca soube da minha existência. 

 

Houve um dia em que o Victor nunca mais voltou às aulas - foi transferido de escola - e então eu chorei muito. Chorei durante uma semana pelo Victor que não conhecia e com o qual nunca falei.

 

Até que vi o Luís. Eu já gostei de um rapaz chamado Luís. 

 

O Luís era um rapaz moreno de olhos verdes, e era ainda mais velho que o Victor. Eu gostava do Luís, eu sonhava com o Luís, eu suspirava pelo Luís, eu chorava pelo Luís, só que eu não conhecia o Luís, porque o Luís era de uma turma diferente e eu demasiado envergonhada para me apresentar.

 

O Luís era rebelde e andava sempre de preto, e então eu comecei a andar de preto também, só que o Luís nunca soube da minha existência. 

 

Houve um dia em que Luís nunca mais voltou às aulas - desistiu de estudar - e então eu chorei muito. Chorei durante uma semana pelo Luís que não conhecia e com o qual nunca falei.

 

Até que reparei no Bruno, que era da turma do Luís. O Bruno tinha cabelos negros, olhos castanhos e fazia grafitties. Eu gostava do Bruno, eu sonhava com o Bruno, eu suspirava pelo Bruno, eu chorava pelo Bruno, só que eu não conhecia o Bruno, porque o Bruno era de uma turma diferente e eu demasiado envergonhada para me apresentar.

 

O Bruno sabia que eu existia e que eu gostava dele, só que eu sabia que era demasiado nova e que nunca olharia para mim, por isso nunca fiz nada para chamar a atenção.

 

No final do ano o Bruno mudou de escola, e então eu chorei muito. Chorei durante uma semana pelo Bruno que não conhecia e com o qual nunca falei.

 

Até que reparei no Hugo, que tinha sido da turma do Bruno e do Luís, só que o Hugo nunca mudou de escola e eu tive que levar durante dois anos com o romance dele e de uma rapariga ainda mais nova que eu... E chorei por ele bem mais do que uma semana...

 

Como é fantástica a adolescência! Às vezes fico com saudades desses tempos... Depois lembro-me que comecei a namorar com o Pedro, que era irmão do Luís, que rapidamente me trocou por uma loira no Algarve, e lá se foram as saudades.

O túnel

Já há muito tempo que não entrava no túnel, e que não ouvia as pessoas lá ao fundo, como se estivessem longe de mim. Já há muito tempo que caminhava sóbria em casa, nos restaurantes, nas ruas... Mas no fim-de-semana foi diferente, e o problema que me assaltava na infância voltou a assaltar-me novamente.

 

Os médicos nunca me souberam compreender, ou eu é que nunca me consegui explicar, mas o túnel às vezes encerra-me em si e eu fico distante e sinto-me distante, tão distante como se não me conseguissem tocar.

 

"É como se de repente estivesse a sonhar e conseguisse olhar as pessoas de fora do meu círculo" foi o que sempre comuniquei aos xôs doutôres que me analisavam e que me tentaram escarafunchar a mente como se de uma cobaia se tratasse. Após dois ou três encefalogramas e outras tantas análises, nada de errado eu tinha, e os médicos foram desvalorizando, como se fosse só uma criança carente de atenção. Mas eu continuava a entrar no túnel e no sonho aparente, e continuava-me a queixar, até que os médicos convenceram a mãe a deixar de trabalhar que isto era "falta da mãe" diziam! Talvez tivessem razão. E com a presença mais assídua da mãe, deixei, por vários anos de entrar nesse túnel que me sugava a alma e a deixava fora do meu corpo. E durante anos apenas permaneceu a lembrança desses tempos, dos tempos em que eu deixava de agir, e ouvia os outros à minha volta a falarem, sem que eu conseguisse interagir, com aquela sensação de que se quer correr mas o corpo não corresponde ao pedido da mente.

 

Mas parece que não se pode fugir para sempre desse estranho túnel inexplicável, e no fim-de-semana, voltei a entrar nesse túnel. No meio de uma multidão, de um barulho ensurdecedor, voltei a ver as pessoas a passarem por mim mais rápido do que realmente andavam, mais longe do que realmente estavam, e inexplicavelmente consegui encontrar o silêncio dentro de mim como se a música tivesse simplesmente parado. Tentei, em vão que a minha alma reentrasse no corpo e que voltássemos a ser um só, mas só quando por fim encontrei o silêncio, um silêncio real e não adulterado é que me reencontrei comigo mesma, e voltei a ser eu, alma, ouvidos e visão normal.

 

Muitos acharão que nessa noite bebi mais do que a conta, a sensação é realmente a mesma, mas os meus lábios não tocaram em álcool, a não ser que a coca-cola tivesse sido adulterada à lata fechada, e assim após tantos anos de descanso, deixo novamente de conseguir estar em locais com demasiada gente e barulhentos sem que me perca por entre as gentes e me veja do lado de fora, como se de um sonho se tratasse.

 

Acho que ainda hoje não consigo explicar verdadeiramente o que me acontece nesses breves minutos no túnel.

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos. Mais do que um blog, são pedaços de uma vida.