Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

A carta que nunca te escrevi e que nunca lerás

Querido Pai,

 

Porque hoje dizem que é o teu dia, hoje trato-te com uma hipocrisia que não me é característica e trato-te por querido, mas não te habitues mal, que sabes que não se voltará a repetir. 

 

Nunca foste pai de ninguém, querido pai. Tiveste três filhos, mas nunca soubeste o que era ser pai de alguém. Em contrapartida, acho que também nunca soubeste o que era ser querido, querido pai. Nenhum dos teus outros filhos foi ao teu funeral, e eu fui porque... Nem sei bem porquê, confesso. No fundo eras meu pai, no fundo deveria de gostar de ti, apesar de tudo. Pai é pai, dizem.

 

Dizias não saber amar, porque nunca tinhas sido amado antes. Que desculpa tão esfarrapada, querido pai. O amor sente-se, não se aprende, se não, que eram dos animais selvagens, lá na selva? Se não gostavas de como tinhas sido tratado, tiveste a tua oportunidade para mudar. Nunca o fizeste. Nunca quiseste ser pai e fazias questão de ir referindo isso ao longo da vida, antes que te pudesse cobrar o que quer que seja.

 

Durante muito tempo, pensei que o problema era meu, querido pai, que por ser demasiado desastrada, não merecia a tua atenção. Depois pensei apenas que não era suficientemente boa, suficientemente inteligente para que pudesses gostar de mim. Mas todo o meu esforço para ser melhor foi em vão, querido pai. Depois percebi, querias um rapaz e eu era rapariga. Então comecei a interessar-me por carrinhos, por futebol, e até por roupas de rapaz, mas até isso tu desaprovavas. Depois lembrei-me de que tinhas um filho homem de quem também não querias saber. No fundo nunca quiseste saber de ninguém. No fundo, nem de ti, querido pai, nem de ti.

 

Os dias do pai sempre foram complicados para mim. A professora obrigava a fazer as lembrancinhas, a mãe dizia para arranjar lembrancinhas mas... tu nunca foste "o melhor pai do mundo", nem "o meu herói", nem o "super pai". Não haviam lembrancinhas nas papelarias para ti, querido pai. As lembrancinhas que se vendem nos quiosques são só para os pais que são pais, para os pais que amam os seus filhos e se esforçam por eles.

 

Por isso os Dias do Pai, sempre me causaram algum desconforto. Ainda hoje me sinto desconfortável e tu já nem estás cá. Ás vezes penso que gostava de ter tido um pai, outras vezes lembro-me que nunca precisei de ti para nada, na realidade. E que até me saí muito bem, querido pai.

 

Um dia vou querer que o pai dos meus filhos mereça as canequinhas e os porta-chaves pirosos a dizer "super pai", "és o melhor pai do mundo" e vou ver o que é um pai de verdade, ainda que não seja meu.

 

Feliz Dia do Pai, querido pai!

Feliz Dia do Pai!

 

 

Estive longe de ter o melhor pai do mundo.

 

Aliás quase não tive pai - não por ausência física, mas por ausência emocional. O que tinha era sinónimo de terror e não de respeito - como o das minhas amigas - que esse não se conquista com berros e ameaças. Nunca foi, por isso um dia que eu festejasse, contrariamente ao Dia da Mãe, que não havia dia que não fosse roubar uma flor à vizinha para lhe entregar. Na escola - na primária - fazia-se presentes e presentinhos para se entregar, nunca fiz os meus com emoção, até porque sabia que iriam ser largados numa qualquer gaveta sem qualquer interesse ou orgulho.

 

Nunca tive grande orgulho no meu pai, não porque não tivesse feito coisas espectaculares e admiráveis como os outros pais, porque até tinha, mas porque ele também não demonstrava ter orgulho em mim. Na boca dele eu era a filha mais desastrada do mundo, a que não fazia nada de jeito, como admirar um pai que trata assim uma filha? No entanto, este meu pai - que já não anda por este mundo - ensinou-me uma coisa muito importante nesta vida: como não ser pai - nem mãe. E este ensinamento ficou-me gravado na memória e espero, deste modo ser melhor mãe do que ele foi pai. Espero que os meus futuros filhos tenham orgulho em mim, que me abracem o tempo todo, que me lambuzem o tempo todo, que se grudem em mim o tempo todo.

 

Apesar da minha experiência, sei de fonte segura que neste mundo existem pais espectaculares, que merecem todo o reconhecimento, toda a compreensão. E é para esses grandes homens que hoje eu me dirijo e digo com toda a felicidade.

 

 

Feliz Dia do Pai!

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos. Mais do que um blog, são pedaços de uma vida.