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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

A carta que nunca te escrevi e que nunca lerás

Querido Pai,

 

Porque hoje dizem que é o teu dia, hoje trato-te com uma hipocrisia que não me é característica e trato-te por querido, mas não te habitues mal, que sabes que não se voltará a repetir. 

 

Nunca foste pai de ninguém, querido pai. Tiveste três filhos, mas nunca soubeste o que era ser pai de alguém. Em contrapartida, acho que também nunca soubeste o que era ser querido, querido pai. Nenhum dos teus outros filhos foi ao teu funeral, e eu fui porque... Nem sei bem porquê, confesso. No fundo eras meu pai, no fundo deveria de gostar de ti, apesar de tudo. Pai é pai, dizem.

 

Dizias não saber amar, porque nunca tinhas sido amado antes. Que desculpa tão esfarrapada, querido pai. O amor sente-se, não se aprende, se não, que eram dos animais selvagens, lá na selva? Se não gostavas de como tinhas sido tratado, tiveste a tua oportunidade para mudar. Nunca o fizeste. Nunca quiseste ser pai e fazias questão de ir referindo isso ao longo da vida, antes que te pudesse cobrar o que quer que seja.

 

Durante muito tempo, pensei que o problema era meu, querido pai, que por ser demasiado desastrada, não merecia a tua atenção. Depois pensei apenas que não era suficientemente boa, suficientemente inteligente para que pudesses gostar de mim. Mas todo o meu esforço para ser melhor foi em vão, querido pai. Depois percebi, querias um rapaz e eu era rapariga. Então comecei a interessar-me por carrinhos, por futebol, e até por roupas de rapaz, mas até isso tu desaprovavas. Depois lembrei-me de que tinhas um filho homem de quem também não querias saber. No fundo nunca quiseste saber de ninguém. No fundo, nem de ti, querido pai, nem de ti.

 

Os dias do pai sempre foram complicados para mim. A professora obrigava a fazer as lembrancinhas, a mãe dizia para arranjar lembrancinhas mas... tu nunca foste "o melhor pai do mundo", nem "o meu herói", nem o "super pai". Não haviam lembrancinhas nas papelarias para ti, querido pai. As lembrancinhas que se vendem nos quiosques são só para os pais que são pais, para os pais que amam os seus filhos e se esforçam por eles.

 

Por isso os Dias do Pai, sempre me causaram algum desconforto. Ainda hoje me sinto desconfortável e tu já nem estás cá. Ás vezes penso que gostava de ter tido um pai, outras vezes lembro-me que nunca precisei de ti para nada, na realidade. E que até me saí muito bem, querido pai.

 

Um dia vou querer que o pai dos meus filhos mereça as canequinhas e os porta-chaves pirosos a dizer "super pai", "és o melhor pai do mundo" e vou ver o que é um pai de verdade, ainda que não seja meu.

 

Feliz Dia do Pai, querido pai!

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