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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

A Mula conta-vos histórias da música que ouve!

A Mula convida gentes doidas e sem qualquer juízo para vos contar histórias igualmente doidas e sem juízo, mas a Mula também gosta de contar histórias, e há tanto tempo que a Mula não contava histórias que hoje, olhem, hoje decidiu contar-vos uma, sobre o grande flagelo que é um funcionário público da segurança social tentar mudar o sistema. Está visto que não vai correr bem!

 

Estão preparados?

 

A Música é dos Deolinda, e chama-se Há-de Passar.

 

Conta-me Histórias.png

 

 

 

 

Hoje conto-vos a história da Josefina, funcionária da Segurança Social há mais de 30 anos, que farta da opinião que têm a cerca dela - não dela pessoalmente, que a ela quase ninguém a conhece, mas o que ela representa - tenta ir contra o sistema lento, burocrático e até apático com que lida diariamente, só que os obstáculos são demasiados.

 

Tenho vontade de seguir uma outra via

Mas eu desisto

Tenho vontade de mudar a minha vida

Mas não arrisco

 

Josefina tem muitas vontades como podemos ver, mas são imensos os obstáculos que se colocam à sua frente que a impedem de tomar uma atitude radical. Ora é a senhora que vai lá com os 7 filhos pequenos ranhosos e mal-cheirosos, para passar à frente de toda a gente na lei das prioridades e a berraria que isso origina junto dos demais. Ora é o senhor que a insulta porque perdeu o direito ao RSI, por ter recusado apoiar os idosos no centro de dia da freguesia. Ora é todo um historial de gentes que não merecem, que faz com que a Josefina acabe por desistir de se insurgir contra o sistema, porque realmente ela vê muitas alminhas que abusam do sistema mesmo quando ele já é benevolente para alguns, e imagina que tentar ser diferente só poderá originar mais problemas.

 

Só que manter-se neste emprego, realmente causa-lhe alguns problemas de consciência, essencialmente quando precisa de cortar na reforma do pobre idoso, que já mal tem dinheiro para a medicação para a reumática... Custa-lhe tanto que até já pensou em mudar de vida, mas com aquela idade já não arranjaria emprego noutro lugar. Que empresa privada daria emprego a um funcionário público, com a fama que estes têm no mercado de trabalho? Não, a Josefina não arrisca.

 

E deixo-me andar, e deixo-me andar

Aqui bem sentada

Braços cruzados, perna trançada

E deixo-me estar, que essa vontade

Um dia há-de passar

 

E assim Josefina desiste de tentar ser diferente e acaba por fazer o mesmo que os seus colegas: demonstra-se preguiçosa quando é preciso ir pedir uma segunda opinião à chefe, preferindo dizer "não dá"; "não é possível", "tem de tirar a senha D para isso", e afins. Lá no departamento, desde que a Josefina para lá foi trabalhar tinha regras simples e sabia-as bem: fazer o mínimo possível, ser o mais mal disposta possível, para evitar que as pessoas ganhem algum tipo de carinho para com aquele departamento, dissuadindo as pessoas de irem àquele serviço. No fundo, é para evitar que as pessoas estejam lá sempre enfiadas, para que seja o verdadeiro martírio ir para a segurança social e com isso irem o mínimo de vezes possível. Faz sentido? Pois, realmente após conhecer a história da Josefina, fez-me todo o sentido!

 

Tenho vontade de dizer aquilo que penso

Mas tenho medo

Tenho vontade de exigir o que eu mereço

Mas nem me atrevo

 

Mas a Josefina vive assim com estes demónios internos, entre o que gostaria de ser e de fazer na sua função e o que consegue na realidade fazer.

 

É que uma vez a Josefina foi muito simpática com um casal que vivia num barracão ali no bico de Cabelo, que teve que ser desmantelado por causa agora daquilo ser considerado reserva natural, e por causa disso o casal ter ido vier para as ruas, e foi um bico d'obra! Durante UMA SEMANA as colegas recusaram a sentar-se com ela às refeições, diziam "onde é que já se viu, agora sermos sorrisos para com as pessoas que cá vêm!" e realmente a Josefina tem medo de fazer diferente, porque aquelas colegas vão continuar a ser as suas colegas até à idade da reforma e já se sabe, é preciso manter o bom ambiente de trabalho, por isso ela tem medo.

 

Isso coloca-a numa posição muito complicada, porque quando as pessoas vão lá à secretária dela insultá-la e dizer-lhe que não é prestável, e que é preguiçosa e incompetente, ela sente vontade de exigir o respeito que merece e dizer às pessoas que só é assim porque a obrigam, e que se for diferente não tem companhia ao almoço para discutir as novelas que vê à noite às escondidas do marido. Só que sabe perfeitamente que se contasse isso às pessoas que as pessoas iam tentar fazer alguma coisa por ela, e provavelmente iriam levá-la ao Goucha e à Cristina para contar o que vive nos calabouços do Estado, e nem se atreve, que aí então, seria o fim do mundo, e agora com os cortes da função pública, as coisas ficariam pretas para aqueles lados.

 

E deixo-me andar, e deixo-me andar

Aqui bem sentada

Braços cruzados, perna trançada

E deixo-me estar, que esta vontade

Um dia há-de passar

Há-de passar,

Aqui bem sentada

Braços cruzados, perna trançada

E deixo-me estar que esta vontade

Um dia há-de passar

 

E acaba por seguir os restantes carneirinhos e ser igual a todos, contribuindo, qual efeito bola de neve, ainda mais para a má fama que tanto é característica dos funcionários públicos e que ela tanto odeia. E continua a indeferir pedidos que tinham tudo para serem diferidos. E continua a mandar as pessoas tirarem outras senhas que podiam muito bem serem tratados por ela, porque a pausa para o cafézinho chegou, e afins... Ela tenta lutar contra o sistema, mas não consegue, no fundo toda esta luta se passa na sua cabeça mas não passa para o plano real.

 

Tenho vontade que me levem mais a sério,

Mas não consigo

Tenho vontade de berrar o impropério

Mas só me sai isto

 

E novamente, acha que não faz bem ser assim, e acha que a sua opinião tem imenso valor e que por isso deveria de ser levada mais a serio, mas por todas as razões já anunciadas nem se atreve a tentar, e fica inclusive com vontade de dizer palavrões, só que a senhora Josefina nasceu ali para os lados da Foz do Douro e ensinaram-lhe que menina de bem não diz impropérios e como tal, resta-lhe continuar a fazer o seu trabalho como sempre fez.

 

E deixo-me andar, e deixo-me andar

Aqui bem sentada

Braços cruzados, perna trançada

E deixo-me estar que essa vontade

Um dia-há de passar, há de passar

Aqui bem sentada

Braços cruzados, perna trançada

E deixe-me estar que essa vontade

Um dia há de passar, há de passar

Há-de passar, há-de passar, há-de passar...

 

E lá continua a recusar-se a tirar fotocópias aos idosos que lá vão requerer aumentos na reforma, obrigando-os a descer com os andarilhos as 50 escadas do edifício, já que o elevador ficou de ser arranjado há mais de um mês mas sem sucesso. Até que um dia...

 

Há-de passar e esta vontade agora já passou

 

Acorda deste pesadelo e descobre que tudo não passou de um sonho e que nunca desejou ser diferente porque não daria para ser de outra maneira. Que alívio, Josefina! Pensa. Que triste seria viver assim! Esboça um sorriso calça os seus mocassins de pele de há 10 anos, e lá vai para mais um dia de trabalho para causar cabelos brancos a quem a ela recorrem a pedir ajuda!

 

Os funcionários públicos que me leem que me perdoem, mas... alguém tinha de contar a história da Josefina a ver se alguém decide contar a história de forma diferente. Mudar a visão que as pessoas têm dos funcionários públicos depende de todos vós! Mas pelos vistos não depende da Josefina...

 

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Têm uma história engraçada sobre uma música e gostariam de a partilhar connosco? Mandem a vossa história para desabafosdamula@hotmail.com e a história será partilhada aqui nos Desabafos da Mula assim que possível.

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