Comer carnes às sextas-feiras da Quaresma
Quando era pequena cumpria, por obrigações familiares, a tradição - no fundo é só e apenas uma tradição, correto? - de não comer carne às sextas-feiras ao longo dos quarenta dias que separam a festa pagã - Carnaval - da festa cristã - Páscoa.
Ensinaram-me que comer carne às sextas-feiras neste período era pecado. Que poderiam acontecer coisas más, como castigos divinos, às pessoas que comessem carne nestes dias santos. E eu era pequena, e inocente, e crente, e até cobarde, sempre fui uma cagufas e ninguém quer sofrer de castigos divinos apenas por causa de um prazer inocente, como comer um naco de carne ou uma coxa de um frango inocente. Nos outros dias não fazia mal, mas naqueles dias em específico era pecado. Esta questão sempre me fez pensar e acreditar que os peixes eram animais inferiores, e até fazia sentido, porque os peixinhos de aquário dos meus amigos nunca duraram tanto tempo quanto a minha Lassie. Definitivamente, os peixes como vivem menos tempo - vivem menos, não vivem? - acabam por ter menos pecados, e talvez por isso se possam comer às sextas-feiras santas da religião cristã. Felizes os cristãos. Pobre dos muçulmanos na altura do Ramadão. Hoje faz-me sentido, com tudo o que se passa no mundo, na volta eles têm mais pecados, daí não poderem comer como nós nesta altura, têm de lavar a alma. Nós não. Nós como bom povo, podemos comer, é-nos pedido apenas um pequeno sacrifício. Que bom!
Eu acreditei no que me contavam. Era a mãe que me contava. Quem não acreditava na mãe?
Todos as sexta-feiras eu chegava da escola e ela perguntava-me o que é que eu tinha comido, como que a fiscalizar os meus almoços e lanches fora de casa como forma de ter a certeza que tinha uma filha não pecadora debaixo do seu teto.
Até que um dia comi um pão com fiambre ao lanche.
Eu sabia que não podia comer frango, vaca ou porco, que não podia comer bacon, alheiras e chouriço mas... fiambre? Ninguém me avisou que fiambre era carne! Sei lá! Eu era criança, o fiambre vinha assim numas folhinhas brancas, do supermercado, não vinham em cuvetes e não tinham desenhos de animais a confirmar a sua proveniência. Ia lá eu adivinhar, tão nova, que fiambre era carne!
A mãe respirou fundo e disse que como tinha sido a primeira vez, não havia problema, mas para eu não voltar a comer fiambre às sextas-ferias durante a Quaresma. Fiquei assustada, e fiquei à espera do meu castigo divino. Acho que nunca chegou. Quer dizer, eu tive vários castigos, mas o mesmo acontecia a outras pessoas que não se envolviam nestes escândalos da carne, por isso acho que nunca foram pelo que eu comia. Aliás o chocolate e os picantes sempre me castigaram muito mais, mas muito mais, que a carne em si, que essa é-me inofensiva.
Hoje como carne e peixe independentemente do dia da semana e da época em que estamos. A mãe abana a cabeça perante os meus argumentos achando que fez um péssimo trabalho comigo. Eu rio-me! Ela acaba por se rir. E uma vez veio jantar a minha casa numa sexta-feira santa e comeu carne e nem se apercebeu. Não foi de propósito, foi por puro esquecimento. Nunca se apercebeu, e talvez por isso nunca tenha sido castigada. Um dia liga-me chocadíssima a dizer que se esqueceu que presunto era carne e que comeu uma sande de presunto como se não houvesse amanhã numa sexta-feira santa e diz-me assim, meia resignada... "Se calhar tu é que tens razão. Mas pelo sim e pelo não..."
Verdade, eu tenho sempre razão. Essa é uma verdade inquestionável. Mas... Pelo sim e pelo não eu como tudo e qualquer coisa, que pecado é passar fome e deixar os outros passar fome... Pecado é fazer mal, é matar, é atraiçoar e agredir.
Mas se comer carne às sextas-feiras da Quaresma é pecado, então eu aqui me assumo: Sou uma Mula pecadora, a precisar de ser benzida e a precisar que rezem alguns pais nossos e algumas avés marias pela minha alma!