"O que aprendemos com os gatos"
Por vezes quando nada tenho para fazer, vou passear até às livrarias mais próximas, em busca de algo novo que me possa interessar ler. E ontem foi assim. Numa visita à Bertrand, vi um pequeno livro de capa monocromática. Não sei se o que me chamou a atenção foi o título - O que aprendemos com os gatos -, ou simplesmente a imagem de fundo - uma lateral de um focinho de gato olhando atentamente para algo. Folheei delicadamente, li alguns excertos e lá acabei por comprar.
A caminho casa, e enquanto esperava pelo comboio decidi começar a ler o meu pequeno novo livro, que se iniciava com um belo e triste poema de Esteban Villegas:
A um cavalheiro que chorou com a esposa uma pequena perda
Passaram pelas nossas vidas cautelosos,
como quem anda sobre almofadas de algodão,
capazes de andar sobre vidro sem o partir,
de roçar um copo sem derramar uma só gota.
Sabem escolher, no verão, a sobra mais fresca
e, no inverno, o calor dos nossos corpos adormecidos.
Caminhavam pela casa semeando uma esteira
de inapreensíveis fios de ouro ou madrepérola.
Quantas vezes nos roubaram o lugar,
que era também o seu preferido,
e nós, reis destronados e enormes,
fomos acomodar-nos - por assim dizer -
no mais incómodo assento da casa.
Quantas vezes sossegaram a nossa angústia
com esse rumor que lhes vibra na garganta.
Demos-lhes tudo o que quiseram,
e eles aceitaram
com a majestade de quem nada pediu.
E, por vezes, assaltava-nos a estranheza
de termos aberto a casa a uma ferra terrível,
uma fera munida de garras e de dentes que,
com uma língua de lixa, alisa a sua seda ao sol.
Por fim morreram:
apenas um suspiro,
e deles restou um farrapo de pele macia, quase nada,
sigilosos e dignos
na morte como na vida.
Assim foram os nossos gatos,
e mesmo agora,
muitos meses depois,
de vez em quando
encontramos
um pequeno pelo de seda nas nossas roupas.
Há muito tempo que temo que os meus gatos não sejam eternos e que tenha de os ver partir um dia. O sentimento que fica, temo que poucos compreenderão. Um sentimento de impotência, de quem nada pode fazer para mudar a natureza. Nenhuma mãe nasceu para ver partir os seus filhos, e é assim que sinto os meus gatos - como se fossem os meus filhos. O meu gato mais velho, o Mimo, faz, este ano, 7 anos. Dorme, há 7 anos comigo, recebe-me todos os dias na porta desde então. Quando estou doente, é ele que fica ali comigo, horas a fio a cuidar de mim, com uma sensibilidade que só a ele pertence - sabe que nesses dias tem de ficar mais sossegadito, porque preciso de dormir muito, de dormir muito como um gato -, teria dado um bom pai, se tivessemos encontrado uma gata à sua altura.
Este livro, no sentido da morte, não me trouxe nada de novo, às vezes penso nisso, ainda que tente não pensar. O que este livro me trouxe de novo, foi percepção que mesmo quando eles já cá não estiverem, irão existir sinais deles por todo o lado. As marcas dos arranhões na mobília, os pelos entranhados nos texteis, a lembrança dos seus locais preferidos, os seus brinquedos e os não-brinquedos com que eles insistem em brincar... E é nesta altura que penso que não deveria nunca ter animais, por forma a evitar a perda. Essa destruidora perda. Nisto os gatos são mais simples, gostava de simplesmente viver sem pensar no futuro, mas como é descrito no livro, nós humanos sofremos de uma doença degenerativa chamada razão e
"o sintoma mais grave da doença: a mania de planear o futuro, de imaginar o que acontecerá (e que talvez nunca aconteça), o que provoca nos humanos um sério défice de atenção relativamente ao presente; ao pensarem no que virá, mesmo que talvez não venha, os humanos adultos acabam por revelar-se incapazes de compreender o que os rodeia. (...) Arrastam-se pela vida qual sonâmbulos, absortos nos seus pensamentos e isolados da realidade."
E é realidade, como masoquistas impiedosos que somos, vamos vivendo com a sensação de que vamos sofrer, seja hoje, amanhã, ou daqui a muitos anos, e acabamos por sofrer todos os dias. Este livro fez-me sofrer agora, com uma dor que sofrirei, daqui a muitos, muitos anos - assim espero.
Mas cambiando de assunto então, o que aprendemos com os gatos?
Eu aprendi a cuidar do outro, aprendi a dividir o meu espaço e a ceder. Aprendi que o mais importante é termos personalidade própria e que é isso que nos torna especiais. Aprendi que se os meus gatos conseguem ser por vezes pain in the ass e eu os amo, então eu também posso ser, que quem gostar verdadeiramente de mim também me irá aceitar e amar. Mas uma coisa é certa: eu com os meus gatos, aprendo todos os dias, e espero continuar a aprender por muitos e longos anos.
A quem gostar de ler, e a quem gostar de gatos... aconselho vivamente, comprem o livro, é pequeno, lê-se muito rápido e até é baratinho.
See you*