Quem conta um conto #20 Aquelas paredes
Entrou pela casa que não era sua, na calada da noite. Tremia de ansiedade, o estômago revolto lembrava-lhe que a última vez que ali tinha estado sentira que seria a última. E ali estava ela, como que dando um passo atrás na esperança de ainda conseguir recuperar o que naquelas quatro paredes se perdera, algures, sem que tenha percebido como ou porquê.
Como não percebera?
Ainda sentia o seu cheiro no ar, e as memórias da última noite ali naquele espaço ainda estavam muito presentes. Mas as suas coisas já não estavam como as deixara. As suas coisas que outrora enchiam prateleiras e davam o toque feminino àquelas paredes estavam agora em sacos, devidamente arrumados num canto da casa, como se nada daqueles objetos tivessem feito realmente parte daquelas paredes, um dia. Achou, um dia, que aquelas paredes também eram um pouco suas, mas percebeu que nunca foram realmente. Queria encher novamente a casa de cor, de paixão, de amor, mas apenas ouvia silêncio. Queria sentir o calor que outrora sentiu, mas o frio ar, gelou-lhe os pensamentos, as sensações, os ossos. Aquela terrível sensação de perda... Queria chorar. Queria chorar mas sabia que não deveria, para não estragar a forma como se queria mostrar. Queria esperar firme e forte, apesar de estar mais assustada que uma criança pequena na casa fantasma. Engoliu cada lágrima, sentiu cada uma como uma facada bem firme na alma, no coração. Achou que aquele amor um dia prometido lhe pertencera um dia, hoje já não tinha essa certeza.
No silêncio das paredes, conseguiu ouvi-los lá longe, muito baixinho. As brincadeiras toscas, os risos de meninos, as apalpadelas surpresas, os beijos inesperados, os abraços sofridos. Aquelas paredes tinham testemunhado tudo. Promessas, surpresas e brincadeiras, mas também sofrimento, mentiras e lágrimas. Olhou mais uma vez e conseguiu até mesmo vê-los a correr pela casa. Quem os via sempre dizia: Não se comportam com a idade que têm.
Mas hoje já não corriam, deambulavam afastados. Quem os visse não diriam que eram os mesmos meninos de outrora. Cúmplices. Matreiros. Quem os visse hoje já não veria como antigamente brilhavam os seus olhos.
O brilho perdido...
Entrou pela casa que não era sua, na calada da noite sem saber o que esperava encontrar. Sabia que já nada poderia encontrar, apenas vazio. Mas reconheceu, assim que ouviu a chave a rodar a porta, com ele do outro lado, a entrar naquela que era a sua casa, a força que pretendia e precisava para quem sabe a chama daquelas paredes voltar a encontrar.