Quem conta um conto #23 Cartas Soltas IX

Pediste-me um poema. Escrevi um sobre ti. Foste a minha musa. Escrevi sobre as dores da tua vida, sobre o quanto me inspiravas e o quanto eras mais do que o que pensavas, ou que talvez pensasses, mas sem dar a mostrar. E agora percebo. Talvez não fosses tanto assim, afinal. Eu é que te via com grandiosidade, afinal.
Deixei de lado tanto que te queria dizer, ou escrever, que as palavras escritas não mentem tanto quanto as que podem mentir no calor do momento, quando faladas, olho no olho. Deixei por dizer quanto os meus dias eram vazios quando neles não estavas e do quanto me corroía por dentro, quando de ti nada sabia. Nem aqui eu percebi. Todos os sinais vermelhos ligados, bem sinalizados, e eu, na altura nem assim percebi.
Podia ter-te escrito sobre os sorrisos estúpidos com que me deixavas no rosto no caminho de volta pra casa, ou até sobre como os teus abraços eram os melhores do mundo. Tinhas os braços grandes e quando me abraçavas, sentia-me a abraçar o mundo. Sentia carinho. Sentia-me amada. Como eras perito em me confundir e baralhar. Perito em equilibrar.
Podia ter escrito como te olhava de soslaio quando estavas distraído, apenas para te pode olhar sem timidez, sem que percebesses. Ou então, podia ter escrito sobre como o meu coração acelerava quando sorrias para mim ou simplesmente quando me beijavas a mão. Porque às vezes fazias questão de me pôr o travão. O tal do equilíbrio.
Podia ter-te escrito sobre tanto e tanta coisa, que me limitei, na altura a descreve-te, com os meus olhos de amor. Peguei na caneta, olhei para o papel e deixei de parte o que sintia por ti e o que sentia durante as tuas ausências. E como eram duras as tuas ausências... Nunca te contei que os silêncios contigo não me incomodavam e muito menos do quanto me confortavas mesmo sem dares conta. Como sempre me contentei com tão pouco...
Deixei por contar as saudades dos nossos dias de verão, ou das noites junto ao rio. Deixei tanto e tanta coisa. Deixei tanto por dizer e tu deixas-te-me a mim. Ou terei sido eu que te deixei a ti? Lembro-me que aproveitei uma das tuas tão comuns ausências para me ausentar também. Deixei que o vazio fosse aumentando, apenas para ganhar espaço para algo melhor poder entrar.
Acabei por nunca te contar que doeu, doeu tanto, mas que há muito já não dói. Hoje passados estes anos percebo que a forma como eu te via, era só mesmo essa, a forma como eu te via, com olhos de amor. E a forma como eu te via era tão distorcida que nem percebi que nunca exististe como eu te vi. Inventei-te. Criei-te na minha cabeça e nos meus olhos à luz do que eu achava que precisava. E talvez precisasse de ti exatamente assim. Hoje percebo que nunca foi equilibrio. Foi luta. As migalhas que me davas, davas com esforço. Ambos sabemos que precisavas de mim. As migalhas que davas, davas com tanto esforço que quando deixei o vazio e as ausências separar-nos que mal te deste conta e não lutaste. Não sabes como te estou grata por me teres deixado ir.
Hoje sei que o amor que tive por ti foi o espelho do amor que eu precisava ter por mim. A compaixão e empatia que tive por ti, foi para aprender a ter essa mesma compaixão e empatia por mim. Como é curiosa a vida. Pensei salvar-te, salvei-me a mim. Pensei que ia sofrer. Como é curiosa a vida. Hoje olho para trás e não sinto nada, só uma lembrança distante de quem eu era naquela altura. A demasiado boazinha e inocente. Hoje olho para trás e parece que outra pessoa viveu aquele ano contigo, não eu. Talvez pela necessidade do tal equilíbrio ainda guardo ternura, ainda que sem vontade de voltar atrás e ainda assim tenho a sensação de que se voltasse atrás faria tudo exatamente igual.
E talvez por isso, no fim, percebi: eu achava que sim, mas... Nunca precisei que ficasses.





