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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

Quem conta um conto... #3 O Grito dos Desesperados

Tenho tantos textos por aí espalhados, que muitos já os devo ter perdido. Hoje enquanto arrumava o meu e-mail - sim, porque sou uma Mula muito organizadinha e gosto de pôr tudo em pastas e pastinhas - encontrei mais um conto, um pequeno conto, que escrevi para uma peça de teatro na faculdade - digam lá que o meu curso não era todo catita, eram histórias para crianças, eram peças de teatro, e ainda fiz escalada e slide ao abrigo do curso, ah pois é... - que deveria representar as partidas de Morpheu*, mas que abordasse o tema da exclusão social - ou não fosse eu, licenciada em educação social. A peça de teatro teria de ser curta, e então o conto é também ele curto. Já agora, eu nesta peça também fui atriz e fiz o papel de sem-abrigo. Já viram uma mula sem-abrigo? Foi uma coisa muito bonita de se ver...

Bem, como isto mais do que um conto, foi um guião de uma peça de teatro, espero que entendam o conto. 


* Para quem não sabe, Morpheu era o Deus Grego dos Sonhos, que assumia sempre uma personagem humana e que foi fulminado por Zeus por revelar segredos aos humanos através dos sonhos.

 

grito dos desesperados.jpg

 

I - O Cair da Noite

 

Dez da noite na grande cidade. Os fumos dos tubos de escape desaparecem dando lugar à poluição humana nocturna. Com a mesma rapidez e facilidade que os carros abandonam as ruas, vagabundos a povoam com os seus vícios e problemas. Corpos desnudos se expõem ao cair da noite, fazendo-se notar as suas imundas formas com a lua. O cheiro nauseabundo dos que lá habitam, aumenta com o aumentar da lua e com o aproximar do céu. O desespero dos que lá dormem cresce, em mais uma noite que parece nunca mais acabar.

 

- “É lua cheia…!” - Dizem os que por lá passam com todo o orgulho sem perceberem do que se passa à sua volta. Sem perceberem os esfomeados, quer de pão quer de narcóticos. Sem perceberem o desejo daqueles inúteis seres. O desejo de vingança, o desejo de voltar atrás, o desejo de ter uma vida diferente… Não melhor… mas diferente.

 

- Andas-me a enganar sua puta? – Disse berrando o chulo.

 

A prostituta nem se dignou a responder, olhou para ele com desprezo e dirigindo-se para o desempregado tenta ganhar algum dinheiro:

 

- Queres companhia esta noite? – Pergunta com um sorriso de orelha a orelha.

 

 O pobre desempregado sem possibilidade de satisfazer qualquer que fosse o seu desejo, nem mesmo o da carne, afastou-a, dando-lhe um empurrão. O pobre desempregado aproxima-se do sem-abrigo que no seu canto se tentava aquecer e pergunta inocentemente:

 

-Como acabaste nas ruas?

-Comecei como tu, sem trabalho, acabei como ela! – Apontando com desprezo para a bêbada que no seu canto se deliciava com a sua fraqueza – Quando dei por mim estava aqui, sem família, sem casa, e até sem álcool…

 

O bêbado nem reparou no que se passou, no que disseram… limitou-se a rir e a gritar com grande orgulho:

 

- A bebida é a pior inimiga do homem: mas o homem que foge do seu inimigo é um covarde, é um grandessíssimo covarde! – E ria… ria sem parar!

 

O drogado incomodado com tanta gritaria, desesperado com a sua ressaca, tentava satisfazer o seu maior desejo enquanto berrava:

 

-Calem-se todos, calem-se. Vocês sabem lá o que é ter problemas. Vocês sabem lá o que é viver. Calem-se!

 

Com o rodar dos ponteiros do relógio, a cidade parece mudar. Os sem-abrigos já não parecem tão distantes, as putas tristes já parecem mais felizes, mesmo com os chulos a controlar, os drogados já não mais preparam as veias e os alcoólicos partiram as suas garrafas… tudo está realmente a mudar… até o desempregado já amassou o seu jornal e deitou fora o seu pão. Sim, com o crescer da lua realmente a cidade está a mudar.

 

II - De Excluídos a Zombies

 

De repente, uma menina que fugiu de um orfanato por achar a vida injusta e por acreditar que as regras não servem se não para a massacrar, aparece do nada… Está sozinha e desprotegida naquela cidade, no meio do nauseabundo odor, no meio da mudança. Os que nela dormem aproximam-se da menina inocente, pura e cheia de sonhos. Aproximam-se com um ar tenebroso, sedentos de vingança, sedentos de sangue. A menina grita, mas ninguém a ajuda, aliás, ninguém a ouve, porque o povo nunca ouve o grito dos desesperados.

 

Ao longe o chulo observa divertido. Já não tinha uma visão tão bela desde o tempo que convenceu a doce e inocente Gina a trabalhar para ele, a sustentá-lo. Enquanto a pequena gritava, corria em seu auxílio:

 

- Ajude-me, senhor, por favor ajude-me…

 

O chulo não só não a ajudou, como também a empurrou para meio dos sedentos excluídos. E a menina continuou a gritar… e a gritar…

 

De repente todos desapareceram e a cidade ficou deserta. A menina, que agora está deitada na sua cama, desperta com o som do despertador e acorda sobressaltada. E ainda meia ensonada apenas ouve uma voz ao longe: "Morpheu, você nunca mais aprende!".

 

(De imediato se percebe que o Chulo do sonho, era Morpheu, que observava os restantes, divertido...)

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos. Mais do que um blog, são pedaços de uma vida.