Quem conta um conto... #5 O sonho de Sara
Sara tinha vezes sem conta o mesmo sonho: Um rosto que não conseguia decifrar, uma angústia inexplicável e uma faca que era espetada vezes sem conta nas suas costas. O sonho de hoje não tinha sido diferente, mas com o tempo aprendera a lidar com aquelas imagens e já se tinha resignado. Aquelas imagens que a faziam acordar com o coração a palpitar de angústia, já não a atormentavam como antes, aprendera a aceitar esses sonhos que não conseguia controlar e perdera o medo de dormir.
Tudo apontava para mais um dia normal, mas Sara acordara com uma sensação ainda mais estranha que nos dias anteriores, sentia, acordada, que algo de errado se passava, no entanto, como aprendera a lidar com os seus pressentimentos que nunca lhes atribuíra significado, prosseguiu com a sua rotina.
Foi trabalhar de manhã e parecia que o café bem quente tinha conseguido apaziguar os calafrios matinais. Entre reuniões e formações, Sara aparentava estar mais calma, e o seu habitual sorriso apontava para uma vida cheia e feliz. À hora do almoço, novamente a náusea, quase não tocou na sua marmita que continha o seu prato favorito. Não, Sara não estava tranquila e não conseguiu almoçar. Os colegas insistiam para saber o que se passava, mas nem ela conseguia compreender, quanto mais explicar... Olhavam para ela com alguma preocupação.
Ao lanche recebeu uma surpresa, o seu marido, que percebera ao telefone que Sara não estava bem, decidira animá-la com um lindo ramo de rosas vermelhas, e com uma caixa dos seus bombons favoritos. Sara, romântica incurável, adorou a surpresa e uma vez mais, apaziguou aquela maldita voz que a atormentava e que cujas palavras não compreendia. O marido propôs irem jantar fora, faziam 15 anos de casamento, e gostaria de a levar a um novo restaurante que lhe tinham falado com pratos vegetarianos, como Sara adorava. Sara foi obrigada a declinar o convite, adiando-o para o dia seguinte, uma vez que tinha uma reunião que previa terminar bastante tarde.
Sara e Rodrigo, o seu marido, eram um casal bem conhecido lá no escritório. Pareciam perfeitos dentro de uma definição de perfeição que admite imperfeições. Tinham as suas discussões, normais e saudáveis e estavam há cerca de 3 anos a tentar terem um filho, mas sem sucesso. Há um ano que tinham iniciado tratamentos de fertilidade, Rodrigo tinha uma baixa contagem de espermatozóides, e culpava-se por esta dificuldade. As discussões tinham aumentado desde então, porque Sara inconscientemente culpava-o do adiamento da maternidade, no entanto, tentavam manter-se unidos e quebrar a rotina para protegerem a relação destas discussões maioritariamente egoístas. Poder-se-ia dizer que Sara e Rodrigo eram felizes. Conheceram-se na faculdade, no curso de Design, com 25 e 26 anos respectivamente e um ano depois casaram, sem grande festa e apenas com os amigos mais próximos. Terminaram a licenciatura juntos, e ele era hoje professor do curso de Design na faculdade onde estudou, e ela directora do departamento de publicidade de uma famosa marca de desporto.
Sara, que deveria regressar rapidamente ao trabalho, despediu-se com um beijo longo e apaixonado do marido, como se aquele pudesse ser o último. Deu-lhe um abraço forte e demorado, e a náusea regressou. Rodrigo não compreendeu, mas também não questionou e retribuiu.
Sara voltou para o seu trabalho, e um contratempo com o empresário com o qual se iria reunir, resultou no cancelamento da reunião. Sara iria afinal, conseguir fazer uma surpresa a Rodrigo, e reservou uma mesa para dois no tal restaurante, e ainda teve tempo de passar pelo centro comercial, comprar um vestido elegante e comprar uma prenda - um belo relógio suíço, que Rodrigo andava a namorar há algumas semanas. Sara sentia um misto de emoções. Se por um lado ainda sentia uns calafrios que lhe arrepiavam a alma e a abalavam, por outro lado, um nervosismo misturado com uma alegria típica de adolescente, pela surpresa que estava a conseguir preparar à última da hora.
Sara, entra no seu carro e mete pé a fundo em direcção ao seu humilde palácio, herdado de seu pai, e remodelado ao gosto do casal. A excitação que sentia, fazia-a sentir-se miúda novamente, e fizera-a esquecer o terrível dia que tinha passado. "Malditos sonhos sem sentido...", pensava.
Enérgica, entra em casa de passo acelerado para se vestir e surpreender Rodrigo. No entanto, algo de estranho se passava. Era habitual, Rodrigo estar na sala a ver as suas séries favoritas enquanto bebia um cálice do seu vinho do Porto favorito. A sala estava às escuras, a casa estava silenciosa, demasiado silenciosa. Pensou em ligar-lhe para perceber por onde andava, no entanto, não poderia estar longe, o seu carro estava estacionado à porta, era o único carro que tinha. Decidiu procurá-lo no andar de cima, e é então que ouve uns barulhos que rapidamente a fizeram perder toda a calma, toda a excitação que tinha, e os calafrios regressaram uma vez mais.
Abre a porta do pequeno escritório que deveria dar lugar ao futuro quarto do filho e vê a sombra de Rodrigo em pé, possuindo contra a parede uma ruiva de cabelos fartos encaracolados, com metade da sua idade, provavelmente sua aluna da faculdade. Sim, era sua aluna, Sara lembra-se de a ver por lá, nas visitas rápidas que por vezes fazia a Rodrigo na sua hora de almoço.
Em estado de choque, Sara não crê no que os seus olhos estão a ver, desejou vezes sem conta que aquele fosse mais um pesadelo, apenas mais um pesadelo horrível, mas o aparato a que assistia deixou-a sem dúvidas. A ruiva saiu a correr de casa meia despida, meia por despir, Rodrigo olhava para ela assustado, e sabia que não existiam palavras que pudessem amenizar o que tinha assistido. Sara compreendeu finalmente o seu sonho, Sara começou a sentir efectivamente as facadas que recebia nas suas costas vezes sem conta cravadas. Sara sentia a traição do homem que queria bem e que amava.
Sara conhecia-se demasiado bem para sabe que não iria conseguir viver com a humilhação de ter sido traída por uma miúda bastante mais jovem e mais bonita que ela. Sara corre para alcançar da cozinha uma faca afiada, e sem hesitar desfere vários golpes em Rodrigo, que se esvaía em lágrimas e lhe pedia perdão. Sim, Sara sabia que não havia volta, e que não conseguiria viver com a memória de ter sido traída no dia em que fazia 15 anos de namoro, pelo homem que não lhe conseguia dar um filho. Sara matou Rodrigo, e fugiu.
Passaram-se 10 anos desde então, e ainda hoje ninguém sabe onde Sara está.