Quem conta um conto #6 A Carta
Carta de Alice, ao seu amor que nunca o foi.
Sinto-me suja.
Sinto-me suja por permitir que todas as noites te deites comigo depois de te teres deitado com outras. Sinto que minto todos os dias quando digo em voz alta querer regressar a casa depois de um dia de trabalho. Há muito que não me valorizas, que não me mimas, que não me provas o teu amor. Ainda assim, voltas todas as noites, voltas e deitas-te na cama que dizes ser nossa, mas que é mais minha que tua. Esta cama, tem o meu cheiro, as minhas lágrimas, o meu suor de quando fazes amor comigo para disfarçar a tua indiferença. Esta cama, que fora outrora nossa, é apenas só minha, e sinto que violas este meu pertence, sempre que te deitas como se nada se passasse, de madrugada, com um cheiro que não é teu, junto a um corpo que apenas ali está, imóvel, fingindo que dorme. Numa coisa te admiro. Entras sempre com cuidado, em pés de lã para não me acordares, já que julgas que estou a dormir. Amei-te! Oh, se te amei! Mas agora já não aguento sequer a tua presença, e a sensação de morte de um de nós é um alívio.
Pergunto-te se alguma vez me amaste. Não! Não respondas, não quero mais mentiras, não quero que me continues a enganar como sempre o fizeste desde que nos casámos. Casámos por ter um filho teu na minha barriga. Lembro-me como se fosse hoje a felicidade nos teus olhos quando te contei. Quiseste logo casar comigo. Senti-me tão amada, tão desejada. Convidaste-me imediatamente para viver contigo, levavas-me todos os dias o pequeno-almoço à cama. Quando o Santiago nasceu, o nosso menino, abdicaste de tanto por ele, das tuas noites descansadas, das jantaradas com os amigos, ficaste sempre ali ao lado dele, porque eu não conseguia cuidar dele como devia. Mas tu tinhas paciência comigo, tu abraçavas-me quando tinha pesadelos, tu davas o biberão sempre que ele chorava. Quando ele ficou doente tu tinhas esperança, e até eu, que nunca senti qualquer conexão, chorava dia e noite por ele, rezava dia e noite por ele. Tu sabes que sim, tu vias as minhas lágrimas verdadeiras a escorrem-me pelo rosto, tu ouvias as minhas preces. Os meus desejos eram verdadeiros! Afinal até gostava do nosso menino. Afinal eu preocupava-me com ele. Mas infelizmente nunca lhe consegui demonstrar. E quando ele se foi, tu foste com ele. Morreste com ele nesse dia, esquecendo que eu estava viva, e que precisava de ti. Sim, eu estava viva e precisava de ti! Mas tu deixaste de estar lá.
Continuaste dia após dia a dizer que me amavas, não a demonstrar, mas a dizer. Em cada despedida, em cada amanhecer, o teu "amo-te" esteve sempre lá, nas tuas palavras. Nunca nos teus actos, mas nas tuas palavras. No fundo já não me amas, apenas estás habituado a dizer que me amas. Ou até se calhar nunca me amaste verdadeiramente. Se calhar amaste apenas aquilo que eu fui capaz de te dar, mas não de cuidar, e isso tornou-me feia ao teu olhar.
Desde a morte do nosso filho que nunca mais andamos de mãos dadas, nunca mais me levaste a jantar à luz das velas, nunca mais te preocupaste se eu estava bem. Desde a morte do nosso filho mataste uma parte de mim, e a outra parte foi enterrada com ele. Sim, eu descobri que afinal o amava. Acho que no fundo só precisava de mais tempo, um pouco mais de tempo. Tempo esse que não tive. Mas sabes que eu não tenho culpa, eu não matei o nosso filho, mas tu desde esse dia que me olhas como se lhe tivesse cravado uma faca no seu pequeno coração. Eu amava o nosso filho, talvez não tanto quanto tu, mas amava-o ao meu jeito. Mas sempre achaste que não, e achaste que ele morreu por falta de amor. Nunca poderia ter morrido por falta de amor, porque tu, meu amor, sempre soubeste amar pelos dois. Admiro-te por isso. Esperei que conseguíssemos ultrapassar isto e voltar a ser felizes, se é que algum dia o fomos... foi tudo tão rápido... Quando casamos o Santiago já estava na minha barriga há 6 meses... e 3 meses depois a morte levou-o. Acho que nem chegamos a ter tempo de sermos felizes, na realidade.
Meu amor, eu sei que já não me amas, e só hoje compreendi que não me abandonas por piedade. Desculpa se demorei tanto tempo para te compreender. Tens em cima da mesa da sala os papéis do divórcio, eu já os assinei, assina-os e serás livre para ser feliz. Eu ainda sou nova, e sei que também poderei ser feliz. Parto sem grandes expectativas no futuro, e levo-te comigo no coração. Um dia, quando for velhinha e morrer, gostava que existisse céu para podermos ser felizes os três.
Da que sempre te amará.