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Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

Quem conta um conto #8 - À tua espera - Parte XII

Claro que já todos vocês conhecem a história da Ísis, não é verdade? Como tal, deixo-vos aqui os episódios anteriores, apenas para o caso de sentirem vontade de os reler:

 

 

Estão preparados? Em 3... 2... 1...

 

Quem conta um conto.jpg

 

Desde a saída de Dinis, que as discussões entre Ísis e Ricardo se tornaram frequentes. Ricardo, sentindo-a cada vez mais distante, cobrava-lhe diariamente o que fizera por eles, como forma de lhe reprimir a intenção de divórcio, que fora diversas vezes evocada em discussões. Cobrava-lhe que fora graças a ele, que ela teve possibilidades para regressar ao trabalho e investir na carreira e tornar-se na designer de sucesso que hoje era. Que fora graças a ele, que Dinis estudou nas melhores escolas do país e que por isso tenha sido um aluno de excelência, a estudar medicina na Califórnia, como Ísis sempre sonhou. Ísis não negava que Ricardo tinha sido um bom pai, mesmo sem a certeza de o ser realmente, que tinha tentado ser um bom marido, mimando-a e esforçando-se ao máximo para que esta o amasse, mas era inegável que Ísis nunca lhe perdoara o facto de este não lhe ter dado outra opção, quando se assumiu como pai sem o seu consentimento, quando assumiu o controlo da sua vida sem que esta assim o desejasse.

 

Ísis que sempre fora muito independente, acabou por ver a sua vida mudar com o coma. Tivera uma recuperação bastante lenta e sentindo-se sozinha com um filho nos braços, não conseguiu pensar na sua felicidade e para dar o que Dinis precisava - estabilidade, amor e conforto - acabou por irracionalmente deixar-se levar por uma vida que não era a sua, por uma vida que nunca desejou. Como tal, deixou-se emaranhar numa vida de mentira, e a cada ano que passava, era mais difícil terminar com aquele casamento, tendo em conta que nunca transpareceram a Dinis as verdadeiras motivações do mesmo. Nunca contaram a Dinis que Ricardo poderia não ser seu pai, mas seu tio, e que toda a vida que conhecia até então era uma farsa. Ísis sempre soubera que daria a vida por um filho, e foi o que inevitavelmente aconteceu, em prole da felicidade do filho, Ísis abdicou da sua e durante 18 anos fingiu importar-se com o dia de Ricardo, fingiu cada sorriso, cada gesto de carinho, cada palavra de amor. Fingiu de tal modo, que com o tempo até começou a acreditar que poderia ser feliz, que poderia amar Ricardo e até tentou perdoar-lhe... tentou... mas nunca conseguiu realmente.

 

Com a saída de Dinis de casa, Ísis percebeu que já não precisava de fingir, que aqueles 18 anos de dedicação à família, tinham sido paga suficiente pelo que Ricardo fizera por eles, e claro está, o facto de Ricardo se ter tornado cada vez mais arrogante e distante também influenciou na sua decisão: Estava na altura de seguir com a sua vida, de lutar para voltar a ser a Ísis jovem, determinada e sonhadora que fora até então. E nessa noite tentou buscar algumas respostas na chama da lareira, que outrora fora sua confidente. Ísis deixou de ter dúvidas: "Perdi 18 anos da minha vida, e não perderei nem mais um segundo", pensou em voz alta. Fez as malas e saiu de casa. Passou primeiro no emprego, despediu-se e decidiu regressar a Portugal.

 

 

André nunca imaginara ser possível olhar para Inês como se fosse sua filha, quando se lembrava de Maria e de tudo o que esta lhe fizera perder, sentia ódio e temia que esse ódio fosse transferido para aquela bebé que até então não lhe dizia nada e que tanto se parecia com a mãe. No entanto, ao segurar nos braços pela primeira vez aquele ser tão aparentemente frágil, todo o rancor que sentia se desvaneceu, e deu por si a verter uma lágrima de felicidade, qual pai na zona de partos a segurar a sua filha pela primeira vez. "Vais estar no topo das minhas prioridades Inês, desculpa achar que não te poderia amar... mas eu amo... eu amo muito. Tu és e serás sempre minha filha! Minha bebé!" Dizia André lavado em lágrimas num misto de felicidade e angústia, receando não estar preparado para ser pai solteiro.

 

De volta a Paris, os primeiros tempos não foram fáceis, embora tendo a ajuda da sua amiga Catarina na parte da gestão da galeria, a sua vida passou a ser dividida entre reuniões e mudas de fraldas, até que ano depois, estando exausto, acabou por contratar uma babysitter. Claire, era uma viúva francesa, na casa dos 60 anos, reformada do ensino primário, sem filhos, que via naquela menina a possibilidade de ser avó. Claire viu Inês crescer, e tornar-se cada vez mais bonita a cada dia que passava. No dia que Inês fez 5 anos, e vendo que Claire passava cada vez mais tempo em sua casa. André fez-lhe uma proposta:

 

- Espero não ofendê-la com a minha proposta... - começa André - mas... A Claire sabe que eu gosto muito de si. Que vejo em si a mãe que há muito já não tenho. E também por tudo o que tem feito por nós... por mim e pela Inês. No fundo será a mesma coisa, porque a Claire passa muito pouco tempo em sua casa, e a sua casa é tão grande...

 

- Vá menino André, vá lá directo ao assunto... - resmunga.

 

- Sabe que a galeria está a crescer a olhos vistos e que vamos abrir uma nova galeria em Toulouse, e vou precisar mais de si do que nunca... e que tal vender a sua casa, uma vez que nem tem herdeiros, mudar-se cá para casa e olhe... aproveitar o dinheiro para viver a velhice...

 

- Está a falar a sério menino André? Nem sabe como me deixa feliz... aquela casa é realmente demasiado grande e lembra-me demasiado o Jean... e em como fomos felizes naquela casa. Mas não podemos ficar presos ao passado, não é verdade? Terei todo o gosto, e assim sempre estou mais perto da menina... ai que ela está cada vez mais bonita, é mesmo parecida consigo!

 

André sorriu e percebeu que guardou tão bem o seu segredo, que até ele próprio se esquecera não ser verdadeiramente seu pai. Entretanto Inês aparecera na sala, onde estavam e este corre para lhe dar um abraço tão profundo, agradecendo a família que possuía naquele momento.

 

Treze anos se passaram desde então. Claire agora com 77 anos, encontrava-se um pouco debilitada, e era Inês, com 18 anos que cuidava da mesma, como se de uma verdadeira avó se tratasse, a única que conhecia na realidade. Mesmo tendo conseguido organizar a sua vida, e conseguindo dar conta da gestão familiar, André cuidou sempre de Claire que passou a fazer parte da sua família. Até que esta, numa madrugada de inverno, sofre uma paragem cardíaca e acaba por falecer no hospital.

 

Com a morte da sua Avó Claire, Inês toma uma decisão:

 

- Pai, gostava de ir a Portugal conhecer os avós...

 

- Não estou a perceber... - responde André, baralhado.

 

- Algum dia teria de ser... acho que está na altura.

 

- Talvez um dia Inês, mas preciso de tempo. Sabes que os teus avós maternos nunca quiseram saber de nós, realmente, e os meus pais... sabes que é um caso complicado. 

 

A verdade é que André cortou radicalmente os laços com a família, e apesar desta ter tentado por diversas vezes contactá-lo para lhe pedir perdão, este nunca mais regressou a Portugal. André não conseguia perdoar os pais. Não por estes terem ficado do lado de Maria aquando do divórcio, que isso ele compreendia, mas porque no dia do casamento de Ísis e Ricardo, estes o terem impedido de falar com Ísis de modo a impedir o casamento, e por lhe terem ocultado que Ísis tinha tido um filho de Ricardo. Todos estes anos André sentiu-se traído pela família, pelo irmão, pela mulher da sua vida.

 

- Sim pai, sei que te impediram de ficares com a mulher que sempre amaste. Mas está na hora de seguires em frente... já se passaram mais de 18 anos, acho que está na altura de voltares a amar...

 

- Tu é que és o amor da minha vida, filha!

 

- Oh pai! - beija-o - eu já não sou pequena, vou acabar por seguir com a minha vida... um dia caso-me e... e... eu não quero que acabes sozinho como a Claire...

 

- Oh meu amor - abraça-a forte - Tu vais sempre ser a minha bebé, e a única mulher da minha vida. - desconversa. 

 

André contara a Inês, quando era pequena, vezes sem conta a sua história de amor com Ísis. Esta nunca compreendeu muito bem onde entrava a sua mãe nesta história, mas como André não gostava de falar sobre isso, Inês também nunca insistira. Por outro lado, André dizia a Inês vezes sem conta que Maria era linda, e como ela tinha herdado a beleza da mãe, nunca lhe contara que se quis divorciar desta, e o que esta lhe tinha feito, preservando a memória de Maria. Não valia apena tentar manchar a memória de alguém que já não se pode defender, e isso também não iria mudar nada.

 

Como André ficou triste, Inês conforta-o, pedindo-lhe para pensar no assunto, mas para não se apoquentar com ele, que tinham tempo para decidir. Nesse preciso momento o telefone toca: O pai de Maria estava muito doente, e pedia a André para levar Inês a Portugal uma vez que não gostaria de morrer sem conhecer a neta. André não teve como não aceder ao seu pedido. A verdade é que, se por um lado nunca quiseram saber deles, por outro foi esta indiferença que o permitiu trazer Inês para Paris sem problemas e sem lutas nos tribunais e não poderia impedir Inês a oportunidade de ela conhecer o avô materno.

 

- Vá Inês, parece que as tuas preces foram ouvidas, faz as malas, vamos para Portugal...

 

- Mas... o que é que aconteceu??? - pergunta assustada.

 

- Explico-te pelo caminho.

 

Dirigem-se para o aeroporto e apanham o primeiro avião para Portugal. Durante a viagem foi impossível não pensar em tudo o que deixou para trás em Portugal, era impossível não pensar em Ísis, e até parecia que a sua mágoa se desvanecera com o tempo.

 

Já em Portugal, André apresenta os avós maternos a Inês, e o seu avô vê o seu desejo concretizado, morrendo umas semanas mais tarde. Ao fim de um mês, André começa a ser pressionado pela filha para conhecer os seus pais, mas este ainda não se encontra preparado, adiando o regresso a Paris por mais umas semanas.

 

Foram 18 anos longe do seu país natal, longe da palavra saudade, longe dos seus pais, dos seus amigos de infância. Saudoso, decide vaguear pela cidade e não poderia deixar de ir à estação de comboios, onde tantas vezes esperou por Ísis, ainda muito antes de imaginar que esta seria o grande amor da sua vida. Sentou-se na estação por várias horas. Viu comboios a chegar, comboios a partir. Viu jovens namorados a despedirem-se, a cumprimentarem-se, viu famílias a deixar os filhos, outras tantas à espera dos que chegavam. E não pôde deixar de recordar tudo o que viveu e de sentir saudade. Riu-se sozinho, e agora sentindo-se mais velho, pensou o que teria acontecido se a sua timidez não tivesse levado a melhor e se se tivesse apresentado a Ísis assim que sentiu essa vontade. Reparou também que nesse dia a sua avó faria anos se fosse viva... e que foi neste preciso dia há 19 anos atrás que conheceu, finalmente Ísis. Voltou a esboçar um sorriso.

 

 

Ísis, numa tentativa louca e inconsciente de ver André, decide vir para Portugal, de comboio, e 3 horas depois da sua decisão e de malas em punho, chega a Gare du Nord, em Paris. Como se de uma cidade pequena se tratasse, vagueou pelas ruas de Paris de olhar atento em busca dos olhos verdes que sempre lhe ficaram na memória. Por momentos esquecera-se do motivo que a levara a nunca mais ter procurado André, da raiva que lhe tinha por este a ter trocado por Maria, da raiva e confusão que sentiu quando Ricardo lhe contara que este a tinha abandonado com Inês nos braços, prematura. Toda aquela história nunca lhe fizera sentido, mas os seus sogros sempre a confirmaram... A desilusão que André lhe provocara fora sem dúvida, maior que o amor que sentira por este, mas hoje, mais velha, já não sentia rancor, sentia apenas tristeza e saudade e quando deu por si, estava no interior de uma das galerias de André. Vendo-a perdida e carregada de malas - algo pouco habitual nas visitas às galerias - uma funcionária, jovem e elegante, aproxima-se:

 

- Je peux vous aider? - pergunta com ar simpático e acolhedor.

 

E foi quando Ísis caiu em si, que não poderia simplesmente tentar voltar ao passado, que provavelmente André seguiu com a sua vida, casou, e que já nem se recordaria dela. Pediu perdão e saiu da galeria em passo apressado. Nessa noite dormiu num hotel perto do aeroporto e ligou à sua amiga Patrícia, e avisou-lhe da sua chegada a Portugal no dia seguinte. Ísis e Patrícia há muito tempo que não se falavam, mas as grandes amizades são as que perduram no tempo mesmo sem as palavra e como tal, quando Ísis chegou a Lisboa, lá estava Patrícia à sua espera de braços abertos e de sorriso rasgado no rosto.

 

- My Darling!!!! - Grita Ísis enquanto corre para os braços da amiga - que estás tu, aqui a fazer?

 

Ísis contou tudo à amiga, que há 10 anos deixara as Caldas da Rainha e vivia agora em Lisboa.

 

- Parece que não foi só a minha vida que deu uma grande volta... Tu nunca gostaste de Lisboa, que estás aqui a fazer?

 

- Acho que sabes que nem sempre as coisas são como nós queremos, e a sede da minha empresa mudou para aqui... Era mudar-me ou ficar desempregada...

 

Ísis contara-lhe toda a sua vida com Ricardo, como este se tinha tornado arrogante, que nunca o conseguira perdoar e que nunca fora feliz. Mostrou-lhe fotos do Dinis, falou dele com todo o seu orgulho e remata:

 

- Mas faria tudo novamente! Fiz tudo isto pelo meu filho, e pelos filhos fazemos tudo! Mas ele agora seguiu com a sua vida, e está na hora de eu seguir com a minha! - conclui

 

- E como está a reagir o Ricardo à tua partida?

 

- Ele... eu... hmmm... eu não lhe disse nada, peguei nas minhas coisas e vim embora, ele não sabe onde estou, e por agora não quero que ele saiba.

 

- Então?! Mas... e ele está onde? - pergunta Patrícia baralhada.

 

- Ele foi numa viagem de "negócios", diz ele... e só volta para a semana, até lá ganho tempo para saber o que vou fazer com a minha vida.

 

- E vais regressar às Caldas?

 

- Apesar de ter 45 anos, preciso do colo da minha mãe... estou cheia de saudades dos meus pais, já cá não vínhamos há imenso tempo, que com o tempo o Ricardo foi-se tornando cada vez mais preguiçoso, e era cada vez mais raro virmos a Portugal... e eu preciso dos meus pais... - e agarra-se à Patrícia a chorar.

 

- Precisamos sempre dos nossos pais... Ficas cá esta noite? Fica em minha casa.

 

- Não Patrícia, eu vou hoje apanhar o comboio para as Caldas, mas eu volto, eu não quero que os pais do Ricardo saibam que eu estou cá... Para a semana tenho abrigo no teu lar?

 

- Claro que sim, minha querida! Vá, então, levo-te a Entrecampos. - abraçando-a uma vez mais.

 

Quando Ísis entra no comboio olha atentamente para o bilhete, e olhando para a data sorri. Lembrava-se bem do que tinha acontecido à 19 anos atrás. Na viagem recorda a sua juventude. Lembra-se dos tempos da faculdade, das dificuldades que teve em arranjar emprego na sua cidade, das amigas que deixara para trás, e nem deu pelo tempo passar. Após as 2 horas de viagem, ouviu a sua estação de destino ser anunciada e quando saiu do comboio e olhou para a estação, nem queria acreditar no que os seus olhos viam: o rapaz de olhos verdes e jeans, como sempre de olhar atento na estação. Por momentos, Ísis voltou a ter 25 anos e o rubor da face deixava transparecer que a sua timidez ainda fazia parte da sua personalidade.

 

 

Então Fatia, como é que é o reencontro? Apaixonado ou frio? Ou não há afinal reencontro algum? Agora é contigo! ;)

 

E então, Língua, fui ao teu encontro?... ou... nem por isso?

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