Pediste-me um poema. Escrevi um sobre ti. Foste a minha musa. Escrevi sobre as dores da tua vida, sobre o quanto me inspiravas e o quanto eras mais do que o que pensavas, ou que talvez pensasses, mas sem dar a mostrar. E agora percebo. Talvez não fosses tanto assim, afinal. Eu é que te via com grandiosidade, afinal.
Deixei de lado tanto que te queria dizer, ou escrever, que as palavras escritas não mentem tanto quanto as que podem mentir no calor do momento, quando faladas, olho no olho. Deixei por dizer quanto os meus dias eram vazios quando neles não estavas e do quanto me corroía por dentro, quando de ti nada sabia. Nem aqui eu percebi. Todos os sinais vermelhos ligados, bem sinalizados, e eu, na altura nem assim percebi.
Podia ter-te escrito sobre os sorrisos estúpidos com que me deixavas no rosto no caminho de volta pra casa, ou até sobre como os teus abraços eram os melhores do mundo. Tinhas os braços grandes e quando me abraçavas, sentia-me a abraçar o mundo. Sentia carinho. Sentia-me amada. Como eras perito em me confundir e baralhar. Perito em equilibrar.
Podia ter escrito como te olhava de soslaio quando estavas distraído, apenas para te pode olhar sem timidez, sem que percebesses. Ou então, podia ter escrito sobre como o meu coração acelerava quando sorrias para mim ou simplesmente quando me beijavas a mão. Porque às vezes fazias questão de me pôr o travão. O tal do equilíbrio.
Podia ter-te escrito sobre tanto e tanta coisa, que me limitei, na altura a descreve-te, com os meus olhos de amor. Peguei na caneta, olhei para o papel e deixei de parte o que sintia por ti e o que sentia durante as tuas ausências. E como eram duras as tuas ausências... Nunca te contei que os silêncios contigo não me incomodavam e muito menos do quanto me confortavas mesmo sem dares conta. Como sempre me contentei com tão pouco...
Deixei por contar as saudades dos nossos dias de verão, ou das noites junto ao rio. Deixei tanto e tanta coisa. Deixei tanto por dizer e tu deixas-te-me a mim. Ou terei sido eu que te deixei a ti? Lembro-me que aproveitei uma das tuas tão comuns ausências para me ausentar também. Deixei que o vazio fosse aumentando, apenas para ganhar espaço para algo melhor poder entrar.
Acabei por nunca te contar que doeu, doeu tanto, mas que há muito já não dói. Hoje passados estes anos percebo que a forma como eu te via, era só mesmo essa, a forma como eu te via, com olhos de amor. E a forma como eu te via era tão distorcida que nem percebi que nunca exististe como eu te vi. Inventei-te. Criei-te na minha cabeça e nos meus olhos à luz do que eu achava que precisava. E talvez precisasse de ti exatamente assim. Hoje percebo que nunca foi equilibrio. Foi luta. As migalhas que me davas, davas com esforço. Ambos sabemos que precisavas de mim. As migalhas que davas, davas com tanto esforço que quando deixei o vazio e as ausências separar-nos que mal te deste conta e não lutaste. Não sabes como te estou grata por me teres deixado ir.
Hoje sei que o amor que tive por ti foi o espelho do amor que eu precisava ter por mim. A compaixão e empatia que tive por ti, foi para aprender a ter essa mesma compaixão e empatia por mim. Como é curiosa a vida. Pensei salvar-te, salvei-me a mim. Pensei que ia sofrer. Como é curiosa a vida. Hoje olho para trás e não sinto nada, só uma lembrança distante de quem eu era naquela altura. A demasiado boazinha e inocente. Hoje olho para trás e parece que outra pessoa viveu aquele ano contigo, não eu. Talvez pela necessidade do tal equilíbrio ainda guardo ternura, ainda que sem vontade de voltar atrás e ainda assim tenho a sensação de que se voltasse atrás faria tudo exatamente igual.
E talvez por isso, no fim, percebi: eu achava que sim, mas... Nunca precisei que ficasses.
Às vezes penso que foste apenas uma miragem. Alguém que nunca existiu, a não ser em pensamento. Às vezes acho que te idealizei e construi na minha mente à semelhança dos meus desejos e motivações. Por isso nunca me falaste, nunca me tocaste, nunca me desejaste. Às vezes penso que nunca exististe e que nunca existirás, a não ser em mim.
Não existes. Os meus olhos procuram-te, mas tu não existes. Por isso não te vejo... Deixei de te ver.
Às vezes penso que existes, que apenas apareces e desapareces mediante as emoções, mediante o tempo e a temperatura do corpo. Uma espécie de omnipresença, uma espécie de experiência, algo sobrenatural. Não te construi, apenas te desejei e inventei na minha alma e memória aquilo que não és mas que desejava que fosses. Projetei em ti, na tua possível existência o que eu desejava, os meus medos, as minhas emoções. Os nossos olhos já se cruzaram, mas nunca me falaste. Ou terás falado e eu não terei ouvido? Nunca me tocaste. Ou terás tocado e eu não terei sentido? Nunca me desejaste. Ou terás desejado e eu não terei percebido?
Talvez existas. Talvez os meus olhos te procuram porque existas. Mas não te vejo... Já não te consigo ver.
Efetivamente existes. És real, de corpo e alma com todos os pormenores perfeitos e imperfeitos que te constituem. Não te inventei, ou talvez te tenha inventado um bocadinho para te melhorar. Porque desejamos sempre que os outros sejam melhores, mais perfeitos, mais completos do que nós. A tua existência permanece na minha memória. Sim, eu vi-te, tu existes. Apesar de nunca ter ouvido a tua voz tu existes, até acho que já me tocaste por um impulso, por um erro, por um acidente. Sinto que já me tocaste. Sinto que já me desejaste nem que fosse por um impulso parvo e animal. Sim, sinto que já me desejaste.
Existes e eu agora vejo-te. És real, podes efetivamente tocar-me e eu sentir. Podes efetivamente falar-me e eu ouvir. Podes efetivamente desejar-me e eu perceber. E porque és real a minha alma já não te precisa, que a alma só se alimenta do que não existe: dos sonhos, dos desejos, das utopias. Porque és real e porque eu te posso ouvir, tocar e desejar os meus olhos fecham-se para não te ver, não te tocar e não te desejar.
Fecho os olhos e continuo a imaginar-te perfeito, utópico e irreal. Sorrio. E o meu coração ganha novamente vontade de te procurar. Prefiro continuar a acreditar que não existes, e ser feliz.
Mandei limpar a nossa aliança de casamento. Senti que tinha tirado o mundo de cima de mim. Senti-me tão leve, tão livre, tão solta. O peso do mundo saiu de cima dos meus ombros por breves instantes, por preves minutos, não mais que isso... por breves minutos. Mas nesses instantes fui feliz, fui eu, novamente, como o fui há muitos anos atrás.
Se há 20 anos atrás me perguntassem se era feliz, dizia-o sem reservas, sem dúvidas, dizia que era feliz com a total consciencia que o era realmente. Depois conheci-te, e a minha vida ficou ainda mais completa, mais feliz. O meu coração ficou ainda mais cheio.
Hoje, 20 anos depois sinto que sou merda para ti. Quando olho nos teus olhos sinto-me merda, porque tu me fazes sentir merda. Não pelas tuas palavras, não pelos teus atos, mas pelo teu olhar. Sou merda para ti.
Não importa continuares a dizer que fazes tudo por mim, que andas comigo para todo o lado. Não importa porque não o fazes por ti, não o fazes genuinamente porque queres, porque gostas, porque te importas. Fazes porque parece bem, porque um dia te disseram que deverias de ser meigo e generoso com as mulheres. Mas os teus olhos dizem o contrário.
Poder-me-ia divorciar de ti? Podia... claro que podia. Mas... por vezes é mais fácil suportar a amargura dos teus olhos que um novo recomeço. O que tenho a perder estando contigo, é menor do que o que perderei se for para longe de ti. Se ganharia uma vida mais feliz? Provavelmente, mas acho que já não consigo nem tenho forças para recomeçar, para conquistar, para seduzir novamente. Fazes-me sentir merda, e por isso sou um bocado merda, realmente. Há muito que engordei, há muito que deixei de me arranjar e já nem reconheço a imagem que o espelho reflete. Há muito que sou efectivamente merda.
E tu, finalmente sentes-me desvanecer... sentes que aos poucos perco a alegria que tinha dentro de mim e isso lembra-te a vida miserável que temos, os sentimentos miseráveis que demonstramos ter um pelo outro. E por isso tentas... Tentas, em vão colar os pedacinhos da minha alma. Tentas remediar o que remediado está e mais remédio não existe. Tentas e continuarás a tentar, mas dentro de mim já não há ninguém. Já não hás tu, nem eu... Já não há ninguém.
A voz que ecoa na minha cabeça pede para parar, mas dou por mim a perseguir-te outra vez, a desejar-te mais uma vez. Dou pelos meus olhos irrequietos a procurar-te em cada canto, em cada rua, em cada estação.
Não consigo esquecer o teu sorriso aberto, daquele gelado dia, que te denunciava. Pareceste-me verdadeiramente feliz por me veres surgir, sem que eu sequer percebesse ou suspeitasse de que daquele canto me fitavas.
Não sabes, mas aqueceste a minha noite. Senti. Senti o meu coração a bater a mil à hora, como se voltasse a ser criança e voltasse outra vez a ser olhada com desejo, pela primeira vez.
Sorri envergonhada, e baixei o olhar. Será que sabias que sorria por ti? Para ti? Suspeitaste, tão pouco? Fiquei tão admirada como feliz por te encontrar ali. Como sempre, descontraído, com ar de quem pouco se importa.
Nesse dia, decidiste sem me avisar, brincar ao jogo do gato e do rato... correu mal, e desde então que foges apressado a cada dia. Se os teus passos já eram largos apressados, agora são ainda mais. Por favor, pára de fugir. Rende-te e não fujas de mim, pelo menos não desta maneira.
Que fiz eu? Ou o que não fiz, e querias que tivesse feito? Não podes, simplesmente não podes caminhar apressado na minha direcção e esperares que eu não fuja, que eu espere que me fales, impávida e serena, como se nada de estranho se passasse. Não podes, simplesmente não podes mudar repentinamente a rota e esperares que eu te siga, que te puxe por um braço contra o meu corpo. Não podes, simplesmente não podes esperar que eu te adivinhe e te perceba, deste jeito, uma vez que não te adivinho, nem te percebo, realmente...
Não podes... simplesmente não podes!
E eu não posso... Simplesmente não posso fazer nada mais que perseguir-te e continuar a buscar-te com os olhos irrequietos em cada canto, em cada rua, em cada estação.