Vi-te e memorizei-te na minha memória como uma paisagem ou quiçá uma lembrança de uma viagem. Não sabia se te voltaria a ver nem tão pouco se te reconheceria se te voltasse a ver. És discreto, mas reconheci em ti algo especial. Algo me atraiu para ti sem motivo ou justificação.
Voltei-te a ver.
Mais.
Estás agora colado à minha vista como um post-it importante com uma tarefa a executar sem erros. Desvio o olhar por uns mílimetros e ali estás tu, também tantas vezes a desviar o olhar quando encontra o meu por erro de cálculo ou por falta de velocidade, ou simplesmente pela audácia de me encarares. Quero ser discreta, estou a falhar. Queres ser discreto, penso, mas não te preocupas tão pouco em tentar.
Fujo do teu olhar, corro para a chuva para respirar um pouco, ordenar as ideias. Apareces vindo do nada como uma sombra, em pezinhos de lã apenas para não me deixares pensar. Bem sei que também te intrigo. Intrigas-me mais ainda. Fazes-me perguntas para as quais já tens respostas. Queres preencher os silêncios. Incomoda-te o silêncio comigo mas ainda assim não me evitas. Queres saber mais sobre mim, como eu quero saber mais sobre ti. Que sabemos afinal um do outro? Não! Não quero saber mais de ti!
Tenho medo.
Dás-me medo!
Dás-me medo não por ti, não por seres mau, que não o és, mas por mim, porque já o vivi noutra vida, que foi nesta, mas que por ser há tanto tempo parece que já não a reconheço como atual. Vivi exatamente isto, não contigo mas com ele. Vivi exatamente isto com ele. Só que contigo foi mais rápido. Com ele não. Com ele demorei a emaranhar-me na teia que dizia pela qual nunca iria passar. Passei e fiquei presa. Demorei a desenlaçar-me dos finos fios de seda mas consegui e nesse dia disse que não voltaria a cair em algo semelhante.
E agora tu!
Chegas tu, que sendo tão igual e tão diferente, me fazes relembrar tudo o que vivi com ele. Não o quero viver contigo, porque vivê-lo contigo seria permitir a existência dele novamente na minha vida, no meu pensamento.
És-me tão estranhamente familiar e ao mesmo tempo tão estranhamente novo. Consegues provovar-me uma nova e estranha sensação, que sendo nova a reconheço tão bem. Dou por mim novamente presa num ciclo vicioso que me assombra a alma que me faz reviver uma e outra vez todo o meu passado, como que presa num loop, incapaz de avançar.
Já vivi isto. Exatamente isto! Mas tu és diferente, apesar de igual, tu és matreiro, desconcertante, evasivo. Entras e não pedes licença. Ele pedia. Ele era cuidadoso e reservado e mesmo assim não o vi chegar. A ti sim, eu vi-te chegar. Vi-te chegar muito antes de saberes da minha existência. Vi-te chegar muito antes de saber que eras apenas uma sombra do passado de uma história mal concebida, como um drama barato. E agora vejo-te a chegar e a partir, porque já o vivi com ele, também ele partiu antes de chegar, apesar de continuar a partir e a chegar, a partir e a chegar, vezes e vezes sem conta ao longo de tanto tempo. Livro-me dos finos fios de seda e logo reparo que ainda há mais...
E agora tu!
Quero acreditar que já ter vivido isto na tal outra vida, que me traz vantagem, sabedoria, tática e habilidade, mas percebo que sou apenas um gato a caminhar. Sabes que as patas traseiras dos gatos pisam sempre no mesmo local das dianteiras? Dizem que sim! Também eu sou um gato, mas dos mal-amanhados, a repetir as pisadas mal feitas uma e outra vez. O tempo não passa por mim, não porque não fique velha, que nova já não sou, mas pelos erros em que persisto cair.
Não, não vou cair neste erro. Não vou, porque apesar de me lembrares d'ele, és diferente. Tens de ser diferente. Mas se assim não for, já sei como tudo vai ser. Os sorrisos que me vais transmitir, as lágrimas que me vais provocar, as ilusões que me vais criar. E cá estarei eu, porque o tempo não passa por mim, a pisar, como os gatos, a mesma marca no chão.
A ti, que te julgas maduro, que dizes não gostar de catraias, e te comportas como um catraio mais catraio que tu. A ti, que dizes gostar de mulheres com atitude, mas cuja independência te assusta e te retrai, como criança assustada. A ti, que dizes gostar de ir devagar, mas aceleras nas curvas e nas retas, com a pressa de chegar.
A ti, que te julgas maduro mas que não sabes tomar uma atitude simples, como a de simplesmente admitires que não queres, por medo de te arrependeres e afinal já quereres. A ti, que foges e te escondes das tuas verdades.
A ti, que te julgas maduro e bem resolvido, mas com a vida mais caótica que uma folha de papel bem amarfanhada. A ti, que reclamas dos outros e te esqueces de perceber que tantas vezes és o problema. A ti, que achas que és tanto... e és tão pouco!
A mim, que disse e garanti não colocar pessoas como tu na minha vida, no meu coração, mas que ao primeiro deslize caio redonda no chão. A mim, que me julgo inteligente e coerente e que tantas vezes não articulo a ação com as palavras. A mim, que do alto do meu suposto coração de ferro me apego como criança assustada agarrada à saia da mãe.
A mim, que me julgo jogadora apesar do mau perder e que perco ainda antes de começar o jogo. A mim, que ergo o forte de mulher dura, e que sou incapaz de berrar basta e deixo que pessoas como tu me abram fissuras na armadura.
A mim, que procuro homens mas só encontro meninos. A mim, que procuro proteção e acabo a proteger sem ter ninguém que me proteja de volta. A mim, que busco a reciprocidade e só encontro egoísmo.
A mim, que me procuro e nos outros tento me encontrar.
A mim, que finalmente olho para ti e percebo que preciso de mais.
Como se ainda fosse miúda, E te esperasse impaciente atrás do pavilhão, Pela hora da saída que nunca chega, Inquietando impiedosamente o meu coração.
Espero-te, conformada, diariamente, Com uma tola esperança de criança, Que um dia me olhes de forma diferente, E dês ao meu coração uma nova esperança!
E quando me sorris o mundo para, Contigo nem dou pelo tempo passar... E quando me provocas o meu coração dispara... As tuas ausências fazem-se notar!
Como se ainda fosse miúda, Falo-te com ansiedade descontrolada no peito E com voz trémula que sempre denuncia, A minha total falta de jeito!
Como se ainda fosse miúda, Olho-te envergonhada, de soslaio, esperando Que os nossos olhares se encontrem. Meu sentimento confirmando!
Mas nem assim te mostras incomodado, Entendes os sinais mas nem isso te faz afastar, Sabes o que sinto e nem assim, Ignoras e continuas a fazer-me corar!
Imatura, nervosa, atrapalhada, Diminuo, até, de tamanho a teu lado, Como se ainda fosse miúda, Perco até o meu semblante delicado!
Mas já não sou uma miúda, E teu coração não pertence ao meu, Resta-me fantasiar com a utopia. Não és quem a vida me prometeu!
Chegar e sentir não pertencer, não ter lugar. Chegar e não sentir o lar, não ter motivo para permanecer. Chegar e não querer chegar. Não querer ser confrontada uma vez mais com a realidade de nada valer a pena, da inexistência de um motivo para ficar. Sentir a carência, a ausência e o silêncio do vazio.
Chegar e não ver mil e um motivos porque chegar. Chegar e querer partir. É mais fácil estar longe que perto. É mais fácil forçar o sorriso há muito ausente do que esconder as lágrimas da inevitabilidade, do confronto, da dor de voltar e tudo estar igual. Nada ter mudado. Nem eu.
Cheguei e tudo está igual. Tudo igual.
Cheguei e só quero partir, porque partir é mais fácil do que chegar.
Procuro-te no silêncio mas o silêncio apenas silêncio me devolve. Procuro-te na ausência, mas apenas o vazio encontro. O vazio das prateleiras cujas fotografias já não carrega. O vazio dos momentos que já não sei se alguma vez existiram. Procuro-te e não te encontro, apenas nas memórias, o que me leva acreditar que és apenas isso, uma memória, e talvez uma memória construída que nem nunca existiu realmente. Exististe algum dia sem ser em mim? Exististe algum dia sem ser nos meus ideais? Exististe para além da forma com que te construi e imaginei?
Pergunto ao silêncio na esperança de uma resposta. Nem ele sabe, nem ele responde. Silêncio.
Procuro-te no silêncio do meu coração, ali existes mas não estás em silêncio, nem o meu coração está em silêncio. O batimento acelerado que dia após dia me turva os pensamentos e as emoções. Aqui é que deveria encontrar o silêncio e o vazio. Encontrar uma calmaria que ele desconhece. Talvez por isso aqui dentro seja só barulho. O meu coração desconhece o silêncio.
Como eu queria encontrar apenas o silêncio. Mas um silêncio tranquilizador, calmante e reconfortante. Não este silêncio que me destrói, qual bola de demolição.
Queria um silêncio que fosse silêncio. Mas só encontro este silêncio ensurdecedor. O silêncio que berra. O silêncio que corrói. Até que um dia só restará só isso mesmo, silêncio. Sem barulho, sem destruição. E aí já nada mais sobrará. Silêncio.
Disse batendo a porta sem olhar para trás, ignorando o facto de Maria sufocar com as suas próprias lágrimas. Maria sabia que as coisas não estavam como antes, que Luís já não a olhava como antes, nem a abraçava como antes, mas ainda assim e sem explicar o motivo, Maria foi apanhada desprevenida, não contava com o fim daquela relação que não sendo muito antiga, era suficientemente longa para ela acreditar que ficariam juntos para sempre, suficientemente longa para acreditar que o seu peito era a sua casa e que aqueles braços segurariam a família que imaginava que juntos iriam construir.
Conheciam-se há bastante tempo, apesar da relação ser recente. A vida apresentou-os sem intenção de os juntar, mas com as voltas das voltas que a vida dá, os seus caminhos cruzaram-se e apesar de terem vários fatores em contra, Luís fez-lhe garantir que poderiam ser felizes, que ele seria o seu porto seguro e que com ele, Maria nunca se sentiria só. Maria sentia-se enganada, traída, sentia que Luís lhe tinha mentido. Ela estava só, mais só do que nunca, ainda mais só do que quando Luís a resgatou dos despojos da anterior relação. Naquele momento Maria ficou confusa, não sabia se o amava ou se o odiava pela frieza, pelo desprendimento, pelas falsas expectativas que ao longo do tempo lhe criou.
Luís bateu a porta e sentiu-se aliviado. Tirou dos ombros o peso que aquela relação lhe criava. Há muito que não era feliz, ainda que não soubesse justificar o motivo, já que Maria foi em tempos aquilo que ele sempre tinha desejado. Teria Maria mudado? Sim, Maria mudou bastante ao longo do tempo, mas para melhor, garantiu-lhe Luís, mas ainda assim o peso da rotina tirou-lhe o brilho e o encanto com que a olhava. Sentia-se preso, sentia que a sua vida já não lhe pertencia, mas sim à relação que não queria ter. Luís nunca tinha querido compromissos, enganou-se achando que com Maria poderia ser feliz mas percebeu com o tempo que a sua liberdade era o que mais o fazia feliz. Luís não era livre com Maria? Era. Mas não o suficiente. Queria mais.
Com o tempo Maria foi superando a dor, aos poucos as lágrimas secaram, as amigas permanentemente em contacto tiravam-na de casa, da escuridão em que se queria esconder e substituíram as lágrimas salgadas pelos sorrisos doces.
Por sua vez, Luís começou a sentir-se sozinho. Relembrou o motivo de ter querido Maria na sua vida, lembrou-se de como Maria preenchia o vazio do silêncio e o vazio da sua enorme cama. Lembrou-se do seu sorriso contagiante e do olhar grande e expressivo que sempre a denunciava. Lembrou-se porque a Maria era diferente e do motivo que o fez passar um ano a seu lado.
Quis voltar a tentar.
Convidou-a para sair. Maria não respondeu. Bateu à sua porta, queria falar-lhe, contar-lhe de como se sentia... Maria abriu e viu-o despedaçado, sentiu as lágrimas a querem correr pela sua face, queria abraça-lo, beijá-lo pedir-lhe que nunca mais a abandonasse. Mas depois lembrou-se de tudo o que passou com o abandono, com a porta que se fechou e que não a amparou. Queria dizer-lhe que ainda o amava, mas apenas lhe saiu:
- Adeus!
E bateu a porta atrás de si, ignorando o facto de Luís sufocar com as suas próprias lágrimas de dor.
Dá valor ao teu prémio. Quando lutas, quando suas, quando choras, essencialmente quando choras, dá valor ao teu prémio! Não o encostes a um canto, só porque está conquistado, não percas por ele o interesse, só porque já é teu. Dá valor ao teu prémio.
Dá valor ao teu prémio. Quando te esforças, quando tanto o sonhas, quando vais à guerra e no corpo sofres as chagas, essencialmente quando vais à guerra e ficas com chagas. Dá valor ao teu prémio. Não o desvalorizes só porque podes baixar as armas. Dá valor ao teu prémio.
Lutaste, choraste, sofreste com as tuas chagas. Não percas por ele o encanto só porque agora te é simples e já não te faz sofrer. Aproveita o teu prémio.
Ele queria o que toda a gente quer, quando se ama. Ela queria algo diferente. Ele dizia o que toda a gente diz, quando ama. Ela ria. Dizia coisas diferentes.
Um dia ele virou costas e partiu.
Ela ainda tentou dizer aquilo que toda a gente diz, quando se ama. Mas ele já não ouviu. Ela ainda tentou fazer aquilo que toda a gente faz, quando amam. Mas ele já não sentiu.
Entrou pela casa que não era sua, na calada da noite. Tremia de ansiedade, o estômago revolto lembrava-lhe que a última vez que ali tinha estado sentira que seria a última. E ali estava ela, como que dando um passo atrás na esperança de ainda conseguir recuperar o que naquelas quatro paredes se perdera, algures, sem que tenha percebido como ou porquê.
Como não percebera?
Ainda sentia o seu cheiro no ar, e as memórias da última noite ali naquele espaço ainda estavam muito presentes. Mas as suas coisas já não estavam como as deixara. As suas coisas que outrora enchiam prateleiras e davam o toque feminino àquelas paredes estavam agora em sacos, devidamente arrumados num canto da casa, como se nada daqueles objetos tivessem feito realmente parte daquelas paredes, um dia. Achou, um dia, que aquelas paredes também eram um pouco suas, mas percebeu que nunca foram realmente. Queria encher novamente a casa de cor, de paixão, de amor, mas apenas ouvia silêncio. Queria sentir o calor que outrora sentiu, mas o frio ar, gelou-lhe os pensamentos, as sensações, os ossos. Aquela terrível sensação de perda... Queria chorar. Queria chorar mas sabia que não deveria, para não estragar a forma como se queria mostrar. Queria esperar firme e forte, apesar de estar mais assustada que uma criança pequena na casa fantasma. Engoliu cada lágrima, sentiu cada uma como uma facada bem firme na alma, no coração. Achou que aquele amor um dia prometido lhe pertencera um dia, hoje já não tinha essa certeza.
No silêncio das paredes, conseguiu ouvi-los lá longe, muito baixinho. As brincadeiras toscas, os risos de meninos, as apalpadelas surpresas, os beijos inesperados, os abraços sofridos. Aquelas paredes tinham testemunhado tudo. Promessas, surpresas e brincadeiras, mas também sofrimento, mentiras e lágrimas. Olhou mais uma vez e conseguiu até mesmo vê-los a correr pela casa. Quem os via sempre dizia: Não se comportam com a idade que têm.
Mas hoje já não corriam, deambulavam afastados. Quem os visse não diriam que eram os mesmos meninos de outrora. Cúmplices. Matreiros. Quem os visse hoje já não veria como antigamente brilhavam os seus olhos.
O brilho perdido...
Entrou pela casa que não era sua, na calada da noite sem saber o que esperava encontrar. Sabia que já nada poderia encontrar, apenas vazio. Mas reconheceu, assim que ouviu a chave a rodar a porta, com ele do outro lado, a entrar naquela que era a sua casa, a força que pretendia e precisava para quem sabe a chama daquelas paredes voltar a encontrar.
Eu não quero ser indiferente. Ser tão banal cuja presença ou ausência seja igual. Eu quero marcar, eu quero fazer diferença. Eu quero que me notes a ausência. Que sintas a minha falta. Não só do meu corpo, dos meus beijos, mas da minha presença. Quero que sintas falta das minhas histéricas gargalhadas e das minhas perguntas parvas. Quero acima de tudo que sintas falta da minha necessidade de abraços e da necessidade de me sentir amada. Quero que sintas falta do meu calor ao deitar e da minha luta noturna com os lençóis. Não quero passar despercebida. Não quero que te seja indiferente estar só ou acompanhado. Podes desejar estar só e prometo que te permito espaços e momentos de solidão, mas quero, quando voltares, que sintas felicidade por me veres novamente, por me abraçares novamente, por me ouvires novamente. Quero que sintas falta do peso do meu corpo sobre o teu peito, quando estás só.
Prometeste amar-me e proteger-me. Juraste-me que eras diferente que não me deixarias cair. Deste-me a tua palavra, disseste-me que podia confiar. Falhaste-me. Eu falhei-te, primeiro, mas tu falhaste-me. E por isso eu quero compensar-te, e quero que tu me compenses. Que nos compensemos os dois. Do tempo perdido, das palavras tortas trocadas, dos corações magoados, das facas afiadas lançadas. Lançamos os dois. Magoamos os dois. Quero esquecer o passado e construir um futuro. Mas quero construir um futuro sólido, com bons alicerces, e não construir no ar, com a premissa do "porque não?!". Quero, "porque sim", porque importo e sou importante. Quero um futuro com esperança.
Quero deixar de ter medo. Quero acima de tudo ter paz, e encontrar o meu lar. Não uma casa, tijolos e paredes, mas um coração tranquilo onde possa chamar lar, assentar as trouxas e saber que cheguei, que a partir de agora caminhamos juntos, esteja a calçada como estiver, em bom ou em mau estado. Quero caminhar contigo, ter medo do mundo, contigo, e não ter medo de ti, ou de mim, ou do nosso futuro. Quero recuperar as promessas lá atrás do passado. Quero que se transformem em promessas do futuro.
Quero... Quero... Quero tanta coisa e tanto que não consigo expressar... Mas se pudesse resumir todos os meus desejos diria: Quero que a minha casa definitiva seja o teu coração, porque só quando amamos muito é que sabemos que chegamos. E eu quero simplesmente chegar.