Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Desabafos da Mula

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos.

Desabafos da Mula

Cascatas de Ouzoud

Queria muito ter ido ao deserto. Há quem diga que ir a Marrocos e não ir ao deserto é como ir a Roma e não ir espreitar o Vaticano... Mas a viagem não foi assim tão longa para dar para tanta coisa e tivemos de fazer opções e tendo em conta o tempo, o calor imenso, optamos por ir às cascatas em vez de sermos cozinhadas no areal quente.

 

IMG_20221212_230830.jpg

 

Por isso, escolhemos ir às Cascatas de Ouzoud no penúltimo dia. Apesar de nesse dia as temperaturas ultrapassarem os 40ºC, a verdade é que escolhemos o melhor dia porque o dia amanheceu cinzento e apesar do bafo quente, o sol não nos cozinhou, só nos derreteu...

 

A caminho de Ouzoud

 

Ouzoud fica a 3 horas de Marraquexe, numa viagem longa por estradas desertas por entre as montanhas que nos mostrou bastante a pobreza do país. Vi gente no meio das montanhas a dormir, vi crianças a caminharem sozinhas pelas estradas sem nenhuma vila nas proximidades. Vi crianças numa manifestação que mesmo não entendendo o que diziam pareciam lutar pelos seus direitos. Rapazes e raparigas unidos na luta pelos seus direitos. Vi muita gente sentada na beira da estrada sem ver uma única casa em muitos, mas muitos quilómetros... Vi camelos nas montanhas... ao longe... Vi muita miséria e o meu coração não ficou indiferente. Sem dúvida que vivo num país privilegiado, com acesso a bens e serviços que tomei ao longo da vida por adquiridos e por isso esta viagem, mais do que qualquer outra, foi uma bofetada de realidade, de uma dura realidade.

 

IMG_20221212_233410.jpg

A manifestação

 

Após 3 horas, finalmente chegamos a Ouzoud - que significa azeitonas, em berbere, devido às imensas oliveiras que rodeiam a montanha - nas Montanhas do Atlas Médio. Passar de uma carrinha com ar condicionado fresquinho para um ambiente de mais de 40ºC é terrível. Senti que a minha alma me saiu do corpo naquele choque.

 

O cineasta Martin Scorcese gravou cenas do filme Kundun (1997) no Kasbah Du Toubkal, primeiro hotel local, inaugurado em 1995. Este hotel situa-se mesmo na entrada do trilho para as Cascatas de Ouzoud.

 

IMG_20221212_230917.jpg

Praia fluvial antes de descer para as cascatas. Normalmente as águas são cristalinas, mas como tinha chovido bastante no dia anterior, as águas estavam lamacentas.

 

Interpretamos mal as excursões, e achamos - ou eu achei, vá, que fui eu que comprei, admito a culpa - que para podermos fazer a viagem de barco - não sei se barco será o termo correto... mas assumamos que era um barco - que teríamos de fazer a caminhada por entre os montes. Que grande burrice. Poderíamos ter ido à viagem de barco e visto os macacos sem termos de andar por entre montes ermos e escorregadios com zero proteção.

 

IMG_20221212_230108.jpg

Entrada pelo trilho mais longo cuja única medida de proteção era esta correntinha...

 

IMG_20221212_231151.jpg

Pelo trilho... Não vale tropeçar!

 

Pronto, já começaram as críticas, pensam vocês. Mas a verdade é que o caminho é perigoso, pessoas caíram - eu só não queria ser a primeira, mas depois dos ingleses terem caído já estava por tudo - e o caminho tinha zero vedação ou amparo, e um passo em falso poderia levar-nos para mais perto de Alá e Maomé. O guia ficava muitas vezes entre nós e a falésia para nos proteger, apoiando-se apenas num ou outro rochedo. Não li relatos de alguém ali ter morrido nalguma excursão, mas se tivesse lido a verdade é que não me chocaria, porque estranho é que nunca tenha acontecido nenhum acidente.

 

IMG_20221212_225938.jpg

 

IMG_20221212_231346.jpg

As vistas em todo o percurso são de cortar a respiração. É incrível!

 

Como tinha chovido no dia anterior as cascatas estavam lamacentas, mas diversas fotos por essa internet fora provam que as águas normalmente têm um aspeto cristalino, convidativo a banhos. Não foi o caso, tivemos azar, ou talvez não tenha escolhido assim tão bem o dia, poderíamos ter sol e águas cristalinas para molharmos os pezinhos e refrescarmos a nuca, mas não se pode ter tudo.

 

IMG_20221212_231442.jpg

 

As cascatas de Ouzoud têm uma altitude e 110m e são as segundas maiores cascatas de África, ficando apenas atrás das Victoria Falls no Zimbábue. Demoramos cerca de 1 hora, 1 hora e pouco até chegarmos à base das cascatas para o passeio de barco, já incluindo com a pausa para um belo sumo de romã, natural, espremido na hora.

 

IMG_20221212_231258.jpg

Bendito sumo fresquinho de romã

 

Depois da pausa para o suminho fantástico, continuamos a descer... Desce, desce Mula! Descemos até à base das cascatas para um passeio de barco diferente para apreciarmos de perto... Bem de perto... As Cascatas!

 

IMG_20221212_231557.jpg

O barco

 

 

IMG_20221212_231830.jpg

O belo do passeio, onde o guia quase nos enfia debaixo da queda de água que parecia pouco macia - no sentido de doer, provavelmente, se levássemos com ela em cima directamente!

 

Depois do passeio alucinante de barco, onde ninguém permaneceu seco, por opção e diversão do próprio guia, fomos encaminhados para o restaurante onde poderíamos degustar couscous, tangine ou então - o que eu escolhi - as típicas espetadas de frango com batata frita.

 

IMG_20221212_232155.jpg

O almoço nas montanhas

 

Depois do almoço, comigo a temer ter de subir tudo novamente - porque já se sabe, que quando se desce, tem de se subir... - descobrimos que existia um atalho bem menos ermo, alcatroado, com degraus, comércio e... macacos! Se lá voltar, claramente será o curso que escolherei, apesar de se perder imensa perceção da altitude, mas digamos que é uma experiência para uma vez na vida. 

 

IMG_20221212_232515.jpg

Ólha ó passarinho, macaquinho!

 

IMG_20221212_232701.jpg

Sempre curiosos...

 

IMG_20221212_232416.jpg

Tranquilos no meio dos humanos.

 

Os macacos pareceram dóceis, ainda que nos tenham avisado que se eles nos abraçassem para não o fazermos de volta porque poderíamos ser surpreendidos com uma dentada de pouco amor. Os macacos estavam completamente livres, andavam soltos pela montanha e eram atraídos pelos guias e pelos visitantes com amendoins, que claramente adoravam. Quem me conhece sabe que eu tenho medo de macacos, por isso fui-me mantendo afastada e admirando-os à distância, e deliciei-me com a interação entre eles e os humanos, tão amistosa. Uma senhora inclusive caiu nas graças de um e o seu escalpe não escapou de ser catado.

 

IMG_20221212_232319.jpg

IMG_20221212_232609.jpg

Sempre a aguardar por mais um amendoim...

 

Aqui, em Ouzoud, os comerciantes são totalmente diferentes dos comerciantes da Medina de Marraquexe. Podíamos  ver os produtos à vontade, não nos bombardeavam com perguntas, e pudemos ver produtos típicos com toda a tranquilidade, o que obviamente me agradou bastante.

 

Terminada a excursão... Mais 3 horas até à Medina...

 

Nesse dia caí na cama e não me lembro se quer de sonhar!

O lado B da viagem a Marraquexe

B de Bom

1668687742762.jpg

Mula no Ben Youssef Madrasa

 

Porque há sempre dois lados de uma mesma história, nem tudo foram espinhos na viagem a Marraquexe. Enquanto não saí do hotel estive bem! Brincadeira. Mas não, nem tudo foram espinhos na viagem a Marraquexe. Vi coisas lindíssimas, comi coisas boas, os virgin mojitos ao pôr do sol eram deliciosos, ainda que teria agradecido um pouco mais de álcool e pelo caminho também encontrei gente simpática e hospitaleira.

 

O pôr do sol de Marraquexe foi dos mais bonitos que já vi, independentemente do ponto de onde o víamos. As cores, foram sempre incríveis. Era mágico, e quando penso em Marraquexe, a primeira imagem que me vem à cabeça - a seguir àquela em que eu andava toda tapada dos pés à cabeça - são as cores da cidade ao pôr do sol.

 

À esquerda o pôr do sol na esplanada do quarto do hotel La Maison des Oliviers e à direita Virgin mojitos ao pôr do sol na esplanada do Café France, o tal sem multibanco

 

Cheguei a Marraquexe e a primeira noite foi passada num hotel incrível - mas afastado do centro -, com uma piscina incrível, com comida também bastante apetitosa - tirando um couscous que eu pedi para provar algo verdadeiramente típico e que rapidamente me arrependi porque não consegui comer - e com um serviço bastante bom. Aqui, neste primeiro dia, não me apercebi de que álcool era uma coisa difícil de encontrar, e desfrutei de uns bons mojitos junto à piscina tranquilamente com zero ansiedade.

 

1668687742534.jpg

La Maison des Oliviers

 

O La Maison des Oliviers é incrível à noite ou de dia ao sol

 

Há álcool em Marrocos, escondido, mas há!

 

Screenshot_3.png

O couscous que ficou cá todo praticamente... Não fiquei fã!

 

O pequeno almoço era bastante variado, até nas formigas como já vos tinha dito, mas como em Roma sê romano, eu comi tudo e mais que houvesse que a fome no dia seguinte era imensa - já que o couscous que eu não comi foi ao jantar.

 

Pequeno almoço no La Maison des Oliviers e o famoso chá de menta marroquino

 

Algo que percebi desde o primeiro dia, é que a pastelaria marroquina é muito boa. As sobremesas foram sempre muito boas. Um jogo de sabores intensos, tal como eu gosto.

 

Tentei provar o máximo de doces variados que encontrei e posso já dizer-vos que até a massa dos crepes e das panquecas é diferente. 

 

Já de salgados... fiz sempre escolhas seguras, que o couscous não comido ficou demasiado presente na minha vida, assim de mais típico apenas comi ovos berberes - à esquerda - e as espetadas de frango estilizadas - que as originais não são assim, mas também provei as originais e prefiro muito mais estas com molho barbacue,

 

Aqui no hotel, fiquei agradavelmente surpreendida. Tinha trazido uns biquínis mais tapados - não queria chocar ninguém... - mas a malta estava lá completamente à vontade a desfrutar do sol e dos quase 40ºC com biquínis reduzidos e não senti qualquer olhar ou desconforto por parte do pessoal do hotel, que foram sempre simpáticos e atenciosos.

 

1668687742431.jpg

Mula junto à fantástica piscina no Hotel La Maison des Oliviers

 

Depois da primeira noite fantástica, fomos então para o nosso Riad na Medina. Solicitamos transfer no hotel e lá fomos nós. E foi aqui que eu percebi que Marraquexe não era  bem desfrutar de mojitos alcoólicos à beira da piscina sob 40ºC. O nosso motorista, perante o excessivo e caótico trânsito, decidiu deixar-nos uma praça antes do suposto, mas felizmente a dona do Riad veio ao nosso encontro. Uma senhora francesa muito amorosa que nos levou por entre a labiríntica Medina até à casa que iria ser "nossa" nos próximos dias. Foi aqui que eu comecei a temer pela vida. Motas. Muitas motas. Carroças, carros, motas todos a passar ao mesmo tempo na via, em contra mão, quase contra as pessoas, quase contra mim, por diversas vezes. Foram uns 5 minutos a pé que me pareceram 5 horas, confesso. Sobrevivi. 

 

Screenshot_13.png

Mula na praça Jemaa-el-Fna

 

Como passávamos uma parte do dia... O melhor dos meus dias confesso!


Pedimos um mapa lá no Riad, pedimos conselhos à Yolande - a senhora francesa do Riad - e lá fomos para o centro, que estávamos cheias de fome.

 

DICA DE OURO: Como não tinha dados móveis - que o roaming é caríssimo, e eu já nem me lembrava que existia roaming... - antecipadamente descarreguei o mapa de Marraquexe no google maps, porque uma das coisas que eu li em todas as pesquisas sobre a cidade é que era um labirinto autêntico e que se pedíssemos informações ou direções, teríamos de pagar para as obter. Assim, sempre que estava num sítio com wi-fi, eu traçava o percurso no maps, mas se por acaso precisasse de utilizar o gps e não tivesse internet, o maps permitia navegação - mais complicada de interpretar, bastante mais complicada de interpretar porque não dá direções, mas deu perfeitamente para nos orientarmos. Por isso, sempre que viajarem para um país que tenham roaming, descarreguem antecipadamente os mapas que vão precisar para se orientarem. Posso dizer-vos que nunca regressei ao Riad sem GPS, que claramente nunca iria dar com ele que as ruas para mim eram todas iguais.

 

1668687742875.jpg

Praça Jemaa-el-Fna

 

Como já tínhamos feito o trabalho de casa, vimos onde queríamos almoçar e lá fomos. Chegamos à praça mais famosa de Marraquexe, a Jemaa-el-Fna onde se localizava o restaurante e vi logo um macaquinho com trela a fazer peripécias para os turísticas que me revoltou as entranhas... Ai desculpem, é só para falar das coisas boas. Perdão, retomando. Almoçamos e fomos ao Museu Ben Youssef Madrasa - que para quem não sabe é a maior madraça - escola muçulmana de ensino superior especializada em estudos religiosos - de Marrocos. É incrível! As cores... A arquitetura!... É um edifício imponente e foi também aquele que mais gostei de toda a viagem, daquilo que visitei, que obviamente não foi tudo porque o tempo de estadia também não foi imenso.

 

Screenshot_1.png

Ben Youssef Madrasa

 

Perto da Madrasa, temos também o Le Jardin Secret que é um pedaço de paz na Medina de Marraquexe e acreditem, depois de quase serem atropelados 50 mil vezes, encontrarem este espaço é simplesmente mágico. Poderem parar ao ar livre, estar sossegados na esplanada ou simplesmente no jardim, é impagável - na realidade pagam e bem que 8€ em Marraquexe é um balúrdio. Aqui relaxei, bebi uma bebida fresca, aproveitei uma bela de uma chuvinha boa e refrescante e recarreguei forças para continuar caminho.

 

Le Jardin Secret

 

Por falar em locais que visitamos, visitamos também no dia seguinte - até porque o nosso objetivo foi sempre fazer um pouco de piscina no Riad todos os dias para manter o bronze e a minha sanidade mental, convenhamos - foi o Le Jardin Majorelle. O Museu Yves Saint Laurent estava encerrado para obras por isso ficamos só pelo Majorelle, que foi criado por Jacques Majorelle, pintor francês, que se inspirou na arquitetura dos jardins islâmicos e hispano-mouriscos, comprado na década de 1980 por Yves Saint Laurent e Pierre Bergé.

 

Jardin Majorelle

 

As cores do Jardim Majorrelle são indescritíveis! O que também é impossível de descrever é o calor. O calor imenso que se fazia sentir neste dia! Como a rede de transportes em Marraquexe é praticamente inexistente, fizemos todo o percurso a pé e foi... duro, foi muito duro. Para terem noção as solas das minhas sandálias derreteram, e o tacão além de derretido ainda descolou o que tornou o percurso bastante desconfortável, pelo que... Nesse final de dia, a vossa Mula precisava de álcool.

 

Não é fácil encontrar álcool em Marrocos, porque é visto como algo pecaminoso, típico de prostitutas e drogados, de gente amiga do diabo. Mas sabíamos que haviam alguns bares na Medina recatados e caros - que os torna turísticos - e experimentamos um que já tínhamos lido opiniões e visto a entrada. Ai bendito cosmopolitan... Um dos melhores que já bebi. Afinal eles sabem carregar no álcool, um só e já saí dali meia besga - é mesmo b à Porto!

 

Screenshot_11.png

Pelo que percebi os locais que vendem álcool têm de ficar relativamente escondidos, para que as pessoas não sejam propriamente vistas a consumir... Então estas eram as fantásticas vistas do nosso café, que ironicamente se chamava Café Árabe.

 

O que tem muito em Marraquexe e me deliciou as vistas são gatos. Gatos! Muitos gatos! Gatos que não ligavam minimamente à presença dos humanos e que eram apanhados a dormir em todo e qualquer espaço sem qualquer problema. Gatos que são respeitados. Nos souks - mercados típicos - vi gatos a serem alimentados, vi tacinhas de água espalhadas para eles, vi que eram bem tratados. Também vi um morto num canteiro de uma árvore, mas vamos só focar-nos nas coisas positivas!

 

Gatos, muitos gatos em Marraquexe!

 

Uma outra situação que ao início estranha-se mas depois entranha-se é as orações nas mesquitas. Todos os dias às 5 horas - eu nunca acordei mas a minha amiga sim - e depois à noite, por volta das 21 horas, tocava uma espécie de corneta e depois ouvia-se uns sons estranhos que suponho que fossem as orações. Inclusive quando vim à praça sozinha no - pseudo-fatídico acontecimento - eu vi os senhores à porta da Mesquita de rabo virado para Meca - quer dizer, sou-vos sincera, imagino eu que fosse para Meca, porque não faço a mais pálida ideia onde ficava Meca, tendo por base ali a praça Jemaa-el-Fna - e o que ainda é mais curioso é o respeito pela religião, porque enquanto se ouvem as cornetas a música nos restaurantes deixa de tocar, seja porque está a tocar um rádio, ou porque está um senhor de guitarra em punho. Achei incrível, mesmo, de coração. Ficava um silêncio de repente... E só se ouviam as cornetas que ecoavam em toda a praça!

 

Algo que também achei surpreendente - e então para mim que estava todo o dia a ressacar por internet - é um jardim totalmente gratuito com acesso à internet livre, que é o Cyber Park - Arsat Moulay Abdeslam Cyber Park para ser mais correta e claro, como não poderia deixar de ser, já que Marraquexe é conhecida pela cidade vermelha, a terra do parque era vermelha. Super tranquilo, deu também para relaxar longe de olhares desconfiados, recomendo vivamente.

 

1668687742854.jpg

 

Basicamente foi tudo o que retive de bom - e acho que ainda foi bastante - aproveitando só para dizer que bebi chá de menta - a minha amiga já não me podia ouvir falar no chá de menta - bebi um delicioso chá berbere, comprei óleo de argão biológico - que a minha cara está a amar -, fugi de 100 mil comerciantes, conheci um casal de moçoilos muito simpáticos - um português e um espanhol - e que comi muita coisa boa. 

 

Screenshot_17.png

Chá berbere feito por um homem berbere numa loja berbere, com 50 mil especiarias

 

Tenho ainda para vos contar da excursão às Cascatas de Ouzoud, mas este postal - como diz e muito bem o meu querido José da Xã - já está demasiado extenso, por isso fica para outros carnavais!

 

Espero que tenham gostado do lado B de Marrocos, e aproveito para vos questionar se preferem assim um post extenso, ou se teriam preferido que dividisse para ficar mais curto, ainda que já saibam que publicações curtas não é a minha especialidade!

O lado ruim da viagem

--- Marraquexe ---

Um dia, espero voltar cá com mais pormenores sobre a viagem a Marraquexe, com mais tempo, com fotos, contar-vos o lado belo da viagem, o lado que mostra o Instagram ou qualquer outra rede social. Mas hoje não é sobre este lado belo, não é sobre o incrível nem sobre o fantástico. Hoje quero contar-vos sobre aquilo que não gostei, sobre o lado ruim de viajar para um país tão diferente do nosso.

 

Antes de mais dizer-vos que foi a minha primeira viagem fora da Europa. E logo Marrocos, um país tão culturalmente diferente. Antes de ir tentei informar-me, li testemunhos, dicas, ... No fundo antes de ir, quis preparar-me para o que iria viver, mas percebi que nenhum blog por mais realista que seja, conseguiu preparar verdadeiramente a vossa Mula. Foi um choque, não vou negar, e apesar de um lado meu ter gostado, sem dúvida que os museus, os jardins, os locais turísticos de Marraquexe são muito belos,  um outro lado meu - e talvez o lado maior, que toda a gente sabe que não somos simetricamente concebidos - ficou aterrorizado com tudo o que viu e sentiu. Nenhum blog por mais realista que tentasse ser me conseguiu transmitir a intensidade dos cheiros e da quantidade de lixo que existe nesta cidade. Nenhum blog me conseguiu preparar realmente para a exploração animal que eu vi, para a falta de condições sanitárias a que eu assisti...

 

Para terem noção, eu vi fazerem cimento ao lado de uma padaria, com pão ao ar livre para venda imediata. Eu vi o pó do cimento a depositar-se em cima de todo aquele pão, que provavelmente era o mesmo que eu comia de manhã já que era das padarias mais próximas do meu riad. Eu vi formigas, num hotel bem luxuoso, a cirandarem em cima de tudo o que era para consumo do pequeno-almoço - do pão, das panquecas, das waffles, ..., das compotas. Em Roma, sê romano, dizem. Tentei abstrair-me e comi, não tinha grande opção e tinha fome. Tentei escolher produtos sem formigas de momento, e lá fiz a melhor seleção que consegui. Estou viva, aparentemente formigas não são venenosas ou nocivas para a saúde, e eu comi.

 

Não consegui, de todo identificar-me com a cultura, com a abordagem dos vendedores, com as motas e bicicletas a circular por entre os souks - mercados típicos - que mal tinham espaço para toda a gente que ali circulava, quanto mais para as carroças, motas e bicicletas que andavam por ali tranquilamente e sem grandes cuidados por entre as pessoas. Disto eu fui avisada, disseram-me que me davam um prémio se saísse de Marraquexe sem ser atropelada, e apesar de ter visto a minha vida negra em frações de segundos, por várias vezes, a verdade é que saí sã e salva daquela terra. Aguardo ainda o meu presente.

 

Nunca estive confortável, com exceção de quando estava num museu ou num jardim turístico ou a almoçar no meio de europeus e não-locais. Fora desses sítios, e quem foi comigo ria muito, eu parecia uma múmia, tapada até aos olhos: Vestido até aos pés, lenço pelos ombros, chapéu na cabeça e óculos de sol - que eu não queria qualquer tipo de contacto visual com os comerciantes - fossem três da tarde ou duas da manhã.

 

No 3º dia - creio! - fomos a um local menos turístico beber uma bebida fresca e ver o fantástico pôr do sol de uma das praças mais famosas de Marraquexe, a Jemaa el-Fna, e digo-vos já que é realmente um dos pores do sol mais belos a que assisti. Bebemos tranquilamente, queríamos comer mas a parte do restaurante estava completa e na zona onde nos encontrávamos só serviam bebidas - não entendi, mas respeitei - e assim iniciamos o processo de saída do local para irmos jantar. E digo que iniciamos o processo de saída do local porque foi uma situação complicada que durou provavelmente - ou talvez só na minha cabeça - cerca de uma hora. Pedimos a conta e pedimos para pagar com multibanco. O que seria um processo fácil, não foi. Não tinham multibanco.

 

Burras!!! Burras, que nos esquecemos de perguntar se tinham multibanco. Ainda que durante toda a nossa estadia foi o único local - de restauração - que não tinha multibanco. Até os souks tinham multibanco!

 

Mas adiante.

 

Era necessário levantar dinheiro, e eu é que tinha o cartão. Disseram-nos que o multibanco era ali perto e eu desci à praça para tentar encontrar o dito.

 

A praça:

marraquexe.png

 

No meio de toda esta confusão, alguém encontra alguma coisa? Não, a vossa Mula não encontrou multibanco nenhum. Ora! A vossa Mula limitou-se a hiperventilar enquanto fugia com visão turva de todos os comerciantes, e vendedores ambulantes que tentaram impingir tudo e mais alguma coisa. Comecei a temer afastar-me demasiado do café e não conseguir encontrá-lo de volta - Marraquexe é labiríntico - até porque era Marrocos, não tinha dados móveis, ou rede, ou o que fosse, para tentar-me comunicar caso necessitasse. Com as pernas a tremer, com o coração a saltar-me do peito, com a visão totalmente desfocada - também poderia ser dos óculos escuros... - chego ao café a chorar, em pânico, que não encontrei o multibanco. Inicialmente, e como qualquer pessoa normal - teria de ir alguém normal, se não a viagem seria uma desgraça, não é verdade? - a pessoa que estava comigo pensou que me tivessem feito alguma coisa. Não, ninguém me tinha feito alguma coisa, mas na minha cabeça tinham-me feito tudo e mais alguma coisa - pensamentos limitantes, assumo a culpa. Lá parei, respirei e contei o que tinha acontecido, ou seja, nada, mas que não tinha conseguido encontrar o multibanco. Pessoas normais e racionais pensam de forma, obviamente diferente, e a minha amiga lá foi pedir a alguém do café que a acompanhasse ao multibanco com a justificação de que se eu não encontrei provavelmente ela também não conseguiria encontrar. E lá foi um moço do café, com a minha amiga ao multibanco, e pronto acabou tudo em bem, tirando para o meu coração.

 

Os restantes dias foram, claramente condicionados pela experiência fantástica de estar sozinha nas ruas de Marraquexe e nada mais foi igual. Quem me segue no Instagram viu nas histórias que me fizeram uma tatuagem de henna à força, e feia, o pior de tudo é que ainda por cima era feia! Fiquei com uma pulseira à força, bebi chá berbere - incrivelmente delicioso - após quase ser empurrada para dentro de uma loja berbere por um homem berbere que queria que eu comprasse mais de metade da loja, e eu com o peso na consciência da oferta do chá, lá comprei algumas coisas provavelmente mais caras do que compraria noutros locais...

 

E pronto, foi incrível... Foi incrível regressar! É inegável que eles têm coisas lindas, monumentos lindos, as cores são incríveis, o passeio à montanha foi incrível e também encontramos gente incrível pelo caminho, um dos senhores do nosso riad foi das pessoas mais gentis e pacientes que eu alguma vez conheci! No entanto, se alguma vez regressar será com um homem, de preferência com uma altura superior a 1,80m, com uma musculatura bem visível ou então com um grupo - acima de 4 pessoas está bom! - e de preferência que eu seja a única cagufas para que os outros me acalmem.

 

E é isto meus amores da Mula, não sei se já foram a Marrocos, se sentiram o que eu senti... Partilhem comigo. Se foram a outras viagens, a outros destinos, com histórias que vos fizeram tremer em mau, contem-me também que é para eu riscar do meu globo.

Desabafos do quotidiano, por vezes irritados, por vezes enfadonhos, mas sempre desabafos. Mais do que um blog, são pedaços de uma vida.